Texto: Patrícia Feiten
Assinada pelo presidente Michel Temer no dia 6 de julho, a Medida Provisória 844/2018, que estabelece novas regras para o saneamento básico no Brasil, preocupa especialistas e entidades ligadas ao setor no país. A avaliação é que as mudanças são inconstitucionais e prejudicarão os municípios mais pobres, podendo resultar em aumento de tarifas. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Congresso para virar lei.
Um dos pontos mais criticados é que a Agência Nacional de Águas (ANA) passa a atuar como uma reguladora do saneamento nas cidades interessadas em receber serviços ou recursos federais. Até então, a ANA regulava apenas o acesso e uso de recursos hídricos no âmbito da União, como rios que passam por mais de um estado. A MP também define normas para impulsionar os investimentos privados em saneamento. Atualmente, esses serviços – abastecimento de água, tratamento de esgotos, drenagem de água das chuvas, limpeza e coleta de lixo urbano – são prestados pelos estados ou municípios, por meio de empresas públicas, privadas ou mistas.
“A ANA não tem competência nem pessoal nem experiência para isso (regular o setor)”, afirma o engenheiro civil Abelardo de Oliveira Filho, ex-secretário nacional de saneamento ambiental no Ministério das Cidades e ex-presidente da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa). Para ele, a MP é inconstitucional, pois não atende aos requisitos de urgência e relevância que a justificariam. “A lei do saneamento (Lei 11.445, de 2007) precisa de aperfeiçoamentos. O que não podemos aceitar é que uma mudança total nas regras do setor seja feita por meio de uma MP. Vai desestruturar o sistema de saneamento básico”, pondera.
A forma como o tema foi encaminhado também desagradou a entidades do setor, que esperavam a apresentação do novo marco em um projeto de lei. “Os atores envolvidos não tiveram prazo para elaborar o texto da medida proposta. As mudanças são relevantes e estruturais, portanto, deveriam acontecer após intenso debate com todo o setor de saneamento e com o Congresso Nacional”, disse o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), Roberval Tavares de Souza, em comunicado no site da entidade.
Ao lado de outras três entidades – Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar) e Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae) –, a Abes pretende derrubar a MP através de ações judiciais e pressão sobre parlamentares. Ontem (31/7), o grupo realizou atos públicos contra a medida em várias capitais e alertou, em um manifesto conjunto a ser enviado ao Congresso, para o risco de aumento das tarifas de água e esgoto em decorrência das novas regras.
Na avaliação dos especialistas, outro ponto polêmico do texto da MP é o artigo 10-A, que torna obrigatório o chamamento público para a prestação de serviços de água e esgoto nos municípios – hoje, as prefeituras têm liberdade para firmar contratos diretamente com as concessionárias públicas estaduais e apenas há necessidade de abertura de concorrência caso desejem contratar empresa privadas. Na prática, com a nova regra, as operadoras se interessariam em competir apenas pelos municípios com maior área de cobertura. “Os menores, em geral mais pobres, por serem deficitários, ficariam a cargo das companhias municipais e estaduais, o que dificulta a prestação de serviços de forma regionalizada e inviabiliza o uso de subsídios cruzados”, disse o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil CAU/BR, em manifesto sobre a MP. O subsídio cruzado permite que as empresas de saneamento apliquem nos municípios menores parte dos lucros obtidos com a prestação de serviços nas regiões mais desenvolvidas. De acordo com dados da Abes, dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros, apenas 10% apresentam superávit nas operações de saneamento e o restante depende do modelo de subsídio cruzado.
Outro foco de críticas é o fato de a MP dispensar a exigência do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) para que as prefeituras possam receber recursos federais, um dos pontos fundamentais da legislação anterior. “Sem plano para a assinatura de um contrato, sem metas de universalização, como a sociedade vai fiscalizar os serviços?”, questiona Abelardo de Oliveira Filho.
Tendência mundial
Para a arquiteta e urbanista Liza Maria Souza de Andrade, professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), ao privatizar o sistema de saneamento básico, o Brasil contraria uma tendência mundial, observada principalmente na Europa. “O Brasil está indo na contramão, sempre dependendo de grandes obras, caríssimas e ultrapassadas. Outros países estão reestatizando os serviços de saneamento, criando soluções mais econômicas, com estações (de tratamento) menores e usando vários tipos de tecnologia que melhoram o desempenho do ciclo da água”, avalia Liza Maria, que faz parte do Grupo de Pesquisa Água e Ambiente Construído da FAU/Unb.
A especialista cita dados do estudo Water Remunicipalisation Tracker, realizado pelos centros de pesquisa Observatório Corporativo Europeu (Bélgica) e Instituto Transnacional (Holanda). A pesquisa monitora cidades que privatizaram o saneamento, mas acabaram voltando atrás após constatarem que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) haviam acarretado tarifas muito altas, entre outro resultados insatisfatórios. Entre 2000 e 2014, foram verificados pelo menos 180 casos de “remunicipalização” de sistemas de água e esgoto em 35 países, de acordo com o estudo, que pode ser consultado no site www.remunicipalisation.org. Entre os exemplos, estão Paris, Berlim e Buenos Aires. “Existem soluções de infraestrutura verde e tecnologia social para resolver o problema do saneamento. Caberia aos governos trabalhar nessa direção, para economizar e dar acesso às populações carentes”, afirma Liza Maria.
Publicada em 2007, a Lei 11.445, conhecida como Lei do Saneamento Básico, previa a universalização dos serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgotos no país. Na época, a cobertura de água alcançava 80,9% da população brasileira e 42% eram atendidos por redes de esgoto. Até 2015, esses índices avançaram para apenas 83,3% e 50,3%, respectivamente, segundo os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Liza Maria compara esses dados com indicadores de outro estudo, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a PNAD, em 2017, dos 69,8 milhões de domicílios no país, 85,7% tinham acesso à rede geral de distribuição para abastecimento de água. Do total, 66% contavam com tratamento de esgoto, pela rede geral ou por fossas ligadas à rede. “Isso quer dizer que muitas das comunidade já estão fazendo alguma forma de tratamento de esgoto pela tecnologia social, utilizando alternativas como fossa de bananeiras. Identificamos que as tecnologias sociais seriam uma forma de chegar a essas populações sem grandes obras de saneamento. Temos outras alternativas, como o ecossaneamento, que é muito mais barato”, afirma Liza.
Foto: Estação de tratamento de água (Prompilove/iStock)