Por Clovis Nascimento*
Em um país com mais de 55 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, privatizar o saneamento é prejudicar e condenar os pobres. Como se não bastasse a insensibilidade para com a saúde de milhões de pessoas, privatizar o saneamento é condenar também o meio ambiente. Esgotos e lixo não coletado e ou, não tratado, é fator de poluição de rios, córregos e praias. Desde a redemocratização, o País assistiu a diversos ataques ao sistema público de saneamento, resistindo a alguns, sucumbindo a outros.
O último golpe foi desferido por Michel Temer que, no apagar das luzes, editou a Medida Provisória nº 868 que ressuscita um texto do governo Fernando Henrique Cardoso. A medida acaba com a possibilidade do contrato programa ser assinado por dois entes públicos, privilegiando nas licitações as empresas privadas. Empresas que trabalham sob a lógica da maximização do lucro, que não abrange os mais pobres.
Segundo dados da Munic (Pesquisa de Informações Básicas Municipais), um terço dos municípios brasileiros não tem um programa de saneamento estabelecido. Cerca de 70% da população que compõe o déficit de acesso ao abastecimento de água possui renda domiciliar mensal de até 1/2 salário mínimo e dados do IBGE apontam um salto de quase 2 milhões de pessoas a mais vivendo em situação de pobreza de 2017 para 2018. Isso significa que é a população mais pobre que está mais vulnerável à falta de saneamento e à água. Em um sistema sanitário orientado para o lucro, os mais pobres têm menos chance de serem contemplados. Precisamos de um modelo capaz de promover a universalidade do saneamento, e é essa decisão que se apresenta para nós hoje. Mas para tomá-la, precisamos entender como chegamos aqui.
Uma longa luta
No Brasil, o processo neoliberal teve início durante o governo de Fernando Collor nos anos 1990, com a abertura do mercado brasileiro e as primeiras propostas de desestatização, e avançou no governo de Itamar Franco com a privatização da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Mas, mesmo em meio de um feroz cenário econômico neoliberal, nenhum dos dois presidentes ousou propor a privatização do setor energético e de saneamento. Foi só com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República que a agenda de privatização para ambos os setores foi inaugurada.
No setor elétrico e de telecomunicações, a agenda neoliberal se traduziu na privatização da Telebras e das distribuidoras de energia. No saneamento, porém, o então presidente FHC esbarrou em uma questão: a titularidade. Isso porque, desde a Constituição de 1930, o saneamento brasileiro prevê que o titular do serviço de saneamento seja o município. Mesmo os governos autoritários da Ditadura Militar respeitaram essa premissa, tanto que na década de 1960 foram criadas as empresas estaduais de saneamento, obrigando os municípios a se conveniarem com estas empresas para terem acesso aos recursos do governo federal.
Foi só em 1985, com a redemocratização, que esta medida caiu, fazendo com que os recursos da União passassem a ser disponibilizados para todos os entes da federação. Foi uma luta e também uma conquista. Assim, as companhias passaram a se fortalecer por meio dos convênios com os municípios. O município que não se conveniasse com a empresa estadual não teria acesso aos recursos do governo federal. Apesar desta obstrução, cerca de 1.600 municípios se mantiveram sem assinar convênio e prestando diretamente os serviços de saneamento no âmbito de seu município, inclusive o município de Porto Alegre que não é conveniado com a empresa estadual, a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento).
Foi este imbróglio que não permitiu a privatização das empresas estaduais, uma vez que estas, na qualidade de concessionárias das prefeituras, não poderiam privatizar os serviços sem autorização municipal. Diante deste impasse e da necessidade de convencer individualmente os 5.570 prefeitos a vender as empresas, o processo de privatização foi travado.
O governo federal, então, criou um projeto de lei para cassar a titularidade dos municípios nas regiões metropolitanas. Nessa ocasião, nós, movimentos sindicais e sociais, organizações e representantes de universidades, fundamos a Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA), congregando instituições como a Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), a Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento), a FNU (Federação Nacional dos Urbanitários), a Fisenge (Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros) e demais entidades do setor de saneamento.
A Frente se organiza em torno da agenda de combate ao PL, defendendo a titularidade municipal. Logo quando o projeto entrou em tramitação no Senado, a FNSA pressionou pela substituição da relatoria, que estava destinada ao senador Fogaça, fervoroso seguidor da cartilha neoliberal de José Serra. Articulando com a presidência do Senado, conseguimos a substituição da relatoria, que ficou a cargo do senador Josaphat Marinho, jurista e político ilibado, embora conservador. Após várias conversas, Josaphat compreendeu nossas demandas, principalmente com a dificuldade nas regiões metropolitanas onde havia apenas uma estação de tratamento para atender a vários municípios. O senador propôs uma saída brilhante: “A titularidade nessa situação deve ser compartilhada entre o estado e todos os municípios integrantes da região que recebem água desse manancial”.
Essa foi a tese que prevaleceu, sendo ratificada pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Desde então, nas regiões metropolitanas onde há uma estação de tratamento com um manancial atendendo a vários municípios, a titularidade é compartilhada entre o estado e os municípios integrantes da região metropolitana. Por causa dessa premissa, o projeto de lei do governo FHC, que cassava a titularidade dos municípios, não conseguiu avançar. Coube ao deputado Adolfo Marinho a relatoria do projeto na Câmara, e ele decidiu fazer uma peregrinação pelo Brasil com diversas audiências públicas. A Frente sempre esteva presente em todas, fazendo o enfrentamento ao projeto de desregulamentação do governo federal. Por fim, o projeto do Fernando Henrique acabou não sendo votado – uma grande vitória nossa.
Era Lula
Em 2003, assumiu o governo Lula, que pediu arquivamento do PL 4147, tirando definitivamente da agenda do País a privatização do saneamento. O Brasil iniciou, assim, uma nova era do setor, mesmo diante do quadro dramático deixado por FHC com a falta de investimentos federais e o consequente sucateamento das empresas que ampliaram os índices de falta de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Uma das primeiras medidas da equipe que assumiu a Secretaria de Saneamento de Lula foi colocar à disposição do serviço público brasileiro R$ 2 bilhões para o setor, obtidos via financiamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Mesmo assim, ainda havia dificuldades para operação dos recursos por conta das pressões em cima do desempenho do superávit primário nos primeiros anos do governo Lula, já que o saneamento fazia parte do cálculo como gasto público, e não como investimento.
Foi criado, então, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tirou o saneamento do cálculo do superavit, acabando com as amarras. Só no ano de 2007, por exemplo, foram disponibilizados cerca de 12 bilhões para o setor. Em paralelo, a Secretaria Nacional de Saneamento iniciou a formulação de um projeto de lei que pudesse dar um norte às ações de saneamento no Brasil, o que se efetivou com a promulgação da lei federal nº11.445/2007. A nova legislação estabeleceu a realização do “Contrato Programa” com o objetivo de firmar a segurança jurídica dos convênios entre a Prefeitura e as empresas estaduais. Isso significa que o contrato, quando assinado por dois entes públicos, dispensa a licitação e substitui os antigos convênios.
A lei define os elementos que constituem o saneamento básico: abastecimento e tratamento de água, esgotamento sanitário e manejo dos resíduos sólidos e das águas pluviais. A legislação ainda estabelece a necessidade de apresentação de um plano diretor municipal de saneamento, que precisa ser amplamente discutido com a população.
A volta das privatizações
Nessa época, a nossa principal luta era a universalização dos serviços de saneamento, conquistando o Plano Nacional de Saneamento Básico. Com o golpe ao mandato da presidenta Dilma Rousseff, em 2015, e a consequente ascensão do governo ilegítimo de Temer, a privatização do setor voltou à agenda. Este recrudescimento se materializa com a edição da Medida Provisória nº844, que desestrutura o setor, os princípios de gestão e os marcos legais. A medida acaba, principalmente, com o subsídio cruzado, instrumento que permite que municípios com alta arrecadação financiem os municípios mais pobres, inviabilizando o acesso a serviços públicos de água e esgoto em municípios com menor arrecadação.
Com este cenário de ataque frontal ao saneamento, organizações da sociedade civil e movimentos sociais retomam a Frente Nacional pelo Saneamento, criam o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), que tem o objetivo de ser um braço técnico com formulação de estudos e investigações acerca de gestão, legislação e financiamento. Além disso, o Ondas contribui para fortalecer a luta contra a privatização do serviço público de água e do esgotamento sanitário. A ordem do dia é derrubar a MP nº 868 por ela ser, sobretudo, inconstitucional e continuar a luta para que o saneamento brasileiro possa avançar rumo à universalização.
*CLOVIS NASCIMENTO é engenheiro civil e sanitarista, pós-graduado em Políticas Públicas e Governo. Foi subsecretário de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos do Rio de Janeiro e diretor nacional de Água no Ministério das Cidades, além de presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES). Atualmente é presidente da Fisenge (Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros), vice-presidente do Senge-RJ (Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro) e integrante da coordenação do movimento SOS Brasil Soberano.
Crédito: Arquivo EBC