Nanci Vieira da Costa Fagundes é uma mulher com muita coragem. A arquiteta, que trabalha em áreas ainda tidas majoritariamente como masculinas na profissão – legislação de moradias, plano de prevenção e proteção contra incêndio (PPCI) e acessibilidade -, não se inibe em dizer que o convívio com esse mundo dos homens é muito complicado. “Se você tem uma postura muito firme, se torna arrogante, e se você é muito queridinha, é porque está dando mole”, relata. Para ela, existem poucas mulheres nessas áreas, não porque é um trabalho difícil, mas, principalmente, porque é cansativo ter que provar o seu conhecimento o tempo inteiro. “A gente precisa ser boa antes mesmo de ser boa”.
Mas a história pessoal dessa garota, criada em São Paulo, ajudou a desenvolver um lastro para enfrentar tamanho desafio. Ela nasceu em uma família com cinco homens e três mulheres em que a mãe, apesar de ser uma pessoa maravilhosa, tinha ideias muito machistas. “Ela foi criada assim, então era muito difícil mudar esse posicionamento”. Para a profissional, a carga recebida em casa vem da atribuição de uma dupla, às vezes tripla, jornada às mulheres. Assumindo atualmente o papel de progenitoras, elas acumularam tarefas uma vez que não deixaram de lado o papel de mães e cuidadoras. “E foi isso que aconteceu com a minha mãe, ela tinha que fazer os dois [papéis]. Eu dizia que não era justo ela fazer isso, porque é frustrante você ter que segurar todas as pontas e ainda ser julgada se algo não sair conforme o esperado”, desabafa.
Natural de Mauá (SP), Nanci fez o curso de Desenho Técnico em uma escola de São Paulo, e foi ali que se encantou pela profissão. Criada em uma família grande e com recursos financeiros limitados, a paulista enfrentou muitos desafios antes e durante a graduação. “Eu sempre fui uma aluna muito boa, mas não recebia orientação dos meus pais para estudar”, conta. Ela relembra que abandonou a escola algumas vezes para poder trabalhar, mas sempre por vontade própria e com o intuito de ajudar a família. Em 1999, a história se repetiu na graduação quando ela precisou trancar o curso de Arquitetura e Urbanismo no último semestre. Era mais uma vez a sobrecarga de responsabilidades femininas se sobrepondo aos anseios profissionais das mulheres da família.
Em 2001, casou-se com um gaúcho e desembarcou em Porto Alegre (RS), onde reside até hoje. Tempos depois e estimulada pelo marido, decidiu que iria terminar a faculdade. Em 2014, aos 44 anos, Nanci pegou o diploma. Mal concluiu a graduação e já começou a trabalhar com regularização de moradias, uma área que já tinha afinidade, mas que necessitava de muita leitura e estudo. “Eu entrei nos grupos de arquitetos [no whatsapp], comecei a ler e conhecer a legislação e, assim, os trabalhos foram aparecendo”. Alguns meses depois, também começou a atuar com plano de prevenção e proteção contra incêndio (PPCI) e abriu sua empresa, a Acessa Arquitetura. A profissional se considera uma “arquiteta de formação tardia”, mas a experiência de vida não ajuda tanto assim quando o assunto é enfrentar os homens em uma área onde se julgam donos do campinho. “Não importa quantos anos você tem e nem há quanto tempo está formada, muitos colegas te olham como se soubessem mais que você”, desabafa.
Mesmo que a trajetória profissional estivesse bem encaminhada, o desejo de Nanci sempre foi trabalhar com habitação social e acessibilidade para pessoas com deficiência (PCD). O interesse surgiu através da sua experiência com a maternidade. Hoje, aos 50 anos, ela é mãe de uma menina no espectro autista de grau II. “É a especialidade que mais gosto de trabalhar, mas é a que eu menos trabalho porque, mesmo com a acessibilidade sendo lei, as pessoas só te chamam quando são multadas ou notificadas”, lamenta, destacando que tal atribuição profissional também tem pouca atuação feminina.
Apesar da experiência, a arquiteta conta que nem sempre é fácil aguentar as ofensas, mas é preciso ter coragem. Mesmo lidando com comentários misóginos diariamente, como “vai lavar uma louça”, ela não é do tipo que abaixa a cabeça com facilidade. “A gente precisa de políticas públicas voltadas às mulheres. Falta incentivo na educação dos meninos, falta uma divisão justa nos cargos de liderança, mas, essencialmente, a gente precisa de coragem”, enfatiza. Para ela, as mulheres não podem ter medo de meter a cara e fazer o que tiverem vontade, por mais difícil que seja.