Dando continuidade à série de reportagens sobre assistência técnica para habitação de interesse social, entrevistamos a arquiteta Berthelina Alves da Costa, diretora do SASP. Ela trabalhou com isso na década de 80, num projeto da prefeitura de Diadema, e nos contou um pouco sobre sua experiência e também sobre as dificuldades e desafios do trabalho com assistência técnica.

1- A senhora desenvolveu um projeto de assistência técnica para habitação de interesse social nos anos 80. Nos conte um pouco dessa experiência.

Eu participei do primeiro governo local do PT no estado de São Paulo, que foi no município de Diadema, em 1983. Fui convidada para montar um programa de atendimento à população de baixa renda em autoconstrução. Era recém-formada e desde a época da faculdade eu já me preocupava com a falta de assistência técnica à população que construía a sua própria moradia. Eu era crítica às prefeituras que se limitavam a fornecer as chamadas “Plantas Econômicas” ou “Populares”.  Geralmente, a prefeitura entregava um projeto padrão para uma casa de até 70 m2  e era só. A periferia de São Paulo foi construída assim. Diadema tinha um agravante, era cidade dormitório do ABC, maioria de operários metalúrgicos que construíam as suas moradias nos finais de semana, sem a menor condição. Tinham recursos para comprar um lote financiado, a terra era mais barata em Diadema. Compravam materiais de construção e começavam a construir. Nas épocas das chuvas, ruas inteiras deslizavam. O deslizamento quase sempre ocorria pelos cortes errados nos terrenos feitos pelos moradores quando da construção das suas casas. Na verdade, eu fui retomar um programa de assistência técnica do final dos anos 60, criado pelo arquiteto Luis Fingerman, um dos pioneiros no tema.  Infelizmente, por problemas políticos esse programa foi abandonado pela prefeitura. Claro que 20 anos depois Diadema era outra cidade, surgiram as favelas, loteamentos clandestinos e a precariedade das autoconstruções. A nossa proposta era criar um programa da Prefeitura que, além de garantir projetos diferenciados, desse assistência técnica durante toda a construção da moradia. Era um departamento da Secretaria de Planejamento da Prefeitura. A estrutura era mínima. Éramos 3 arquitetos, 6 estagiários e um engenheiro agrônomo, pois faziam parte do nosso programa as hortas familiares. A área de engenharia e topografia do departamento de obras nos auxiliava quando solicitada. A idéia era não ficar apenas na dependência da estrutura da Prefeitura, mas fazer parcerias com os profissionais da região. Infelizmente, houve uma resistência muito grande da Associação de Engenheiros e Arquitetos. A cultura da Planta Popular era muito forte e a falta de ética dos que só assinavam plantas também. Mas apesar dos desafios, o resultado foi muito bom.

2- Quantas famílias foram beneficiadas? Qual o critério de escolha dos beneficiados?

No período de um ano, foram atendidas aproximadamente 120 famílias em diferentes bairros de Diadema. No primeiro momento, a fiscalização da prefeitura mudou de arrecadadora de multas para esclarecedora. Houve uma grande divulgação na periferia de Diadema, alertando a população das conseqüências dos loteamentos clandestinos e das construções sem assistência técnica. Foram produzidos folhetos e uma cartilha. Os interessados procuravam a prefeitura, faziam um cadastro, apresentavam a documentação de propriedade e respondiam um questionário. Qualquer cidadão morador de Diadema que possuísse um lote e precisasse construir a sua própria moradia era atendido. A área estava limitada a 70m2, que era a ART social da época.

3- Peço que descreva como os beneficiados participaram do processo. Houve metodologia auto-gestionária no processo de trabalho?

 A primeira conversa era fundamental para adquirirmos a confiança do interessado. A relação com a prefeitura era via a equipe de fiscais, que havia construído uma imagem muito ruim junto à população. O PROHAB funcionava em uma “Casinha”, assim era conhecida, de 70m2, construída seguindo os desníveis do terreno. Essa casa foi construída pelo arquiteto Luis Fingerman como protótipo, nos anos 60, justamente para mostrar para a população que era possível construir sem risco respeitando o caimento natural do terreno, que era um dos grande problemas de Diadema, cortes e aterros desnecessários. Portanto, do projeto até a escolha dos materiais construtivos, tudo era feito em um passeio pela “casinha”, uma verdadeira maquete real.  No início, o “cliente” vinha todo tímido, só querendo uma permissão para construir, no outro dia trazia a mulher para conhecer a casinha e depois trazia a sogra e os filhos, todos participavam da discussão da futura moradia. A “casinha” era só uma tipologia, que permitia adequação às necessidades de cada família. Geralmente, a construção era de 50m2 com possibilidade de ampliação. O dia de locação da obra era uma outra festa: mesmo quando a mão-de-obra era contratada, a família ajudava. A lista de materiais para a construção, também era um item muito importante. A relação de materiais, além de evitar desperdício, ajudava o proprietário a se programar para as despesas e conseqüentemente a organização do cronograma da obra.

 

4- Quantos profissionais você estima que trabalharam nessa iniciativa, desde a confecção do projeto até a construção das casas?

A equipe fixa era pequena, mas sempre que necessário solicitávamos ajuda dos topógrafos e dos engenheiros do departamento de obras. A equipe de topografia era importante quando não se conseguia definir com precisão os limites da propriedade para locar a obra. Não poderíamos promover uma invasão no vizinho. Outras vezes, necessitávamos de serviços de engenharia para conter algum tipo de erosão nas ruas, tão comum nas épocas das chuvas em Diadema. 

5- Para além da assessoria em relação ao projeto físico e à construção em si, também foi prestada assessoria jurídica, contábil e social aos assistidos?

O programa se limitava à assistência técnica do projeto arquitetônico completo à construção ou reforma da casa. Por exemplo: nos loteamentos clandestinos, só poderíamos atender quando a prefeitura regularizasse a situação. Era um outro programa, não de Assessoria Técnica a mutirão, a movimentos  sociais de moradia, como ocorre hoje. Era um serviço de arquitetura e engenharia da prefeitura de assistência técnica à população que não tinha condições de contratar um profissional para fazer um projeto e orientar a construção. É a base da Lei 11888/2008. Se em 1983 essa lei já estivesse em vigor, a Prefeitura de Diadema poderia captar recursos do FNHIS, fazer convênios com entidades de profissionais e ampliar o atendimento à população de baixa renda. A prefeitura só tinha recursos para manter o quadro de funcionários já existentes e a infra administrativa. Mesmo assim, conseguimos criar um reconhecimento na população assistida, tanto que os maus profissionais da cidade, os “caneteiros”, tentaram criar um movimento contrario, mas que não prosperou.   Esta é mais uma experiência possível de ser implantada por uma prefeitura, ainda mais agora com a Lei de assistência técnica. A lei possibilita que muitas prefeituras complementem os seus recursos e promovam convênios com entidades de profissionais para implantarem diferentes programas de assistência técnica.

Trinta anos depois a realidade em Diadema pode ser outra, mas as periferias de muitas cidades no Brasil continuam sendo construídas sem a menor orientação profissional.  Nós sabemos que não basta ter uma Lei, ela precisa ser transformada em ações para ter resultado. Cabe às entidades de arquitetos e engenheiros, profissões interessadas, cobrar do Governo Federal um trabalho mais próximo ao município, assessorando o executivo no entendimento e posteriormente na implantação dessa Lei.