Assisti anteontem o filme “Flores raras”, sobre a relação entre a “arquiteta autodidata” Lota Macedo Soares e a premiada poet(is)a norte-americana Elizabeth Bishop. Glória Pires confirma que é uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos e o filme é bem interessante em diversos aspectos. Infelizmente, no que se refere à arquitetura, urbanismo e paisagismo, o filme é uma afronta à história e à memória de nomes como Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Sérgio Bernardes e Burle Marx.
 

O cenário principal do filme é (ou deveria ser) a famosa casa que Sérgio Bernardes projetou para Lota Macedo Soares, na Fazenda Samambaia, em Petrópolis, em 1951. Essa casa recebeu prêmios e foi publicada em diversas revistas no Brasil e no exterior pela sua singularidade e pela inovação ao adotar elementos então pouco usuais na arquitetura moderna brasileira, como telhas metálicas, treliças metálicas e pilares de aço, com materiais tradicionais, como pedra e tijolo (fotos da casa aqui: http://www.archdaily.com.br/br/01-108652/classicos-da-arquitetura-casa-lota-de-macedo-soares-sergio-bernardes)
 

Pois bem. O cenário escolhido para representar a casa de Lota é nada mais, nada menos do que a Casa Edmundo Cavanelas, projeto de Oscar Niemeyer de 1954. Além de nem Niemeyer nem Bernardes serem citados em qualquer momento do filme, a narrativa deixa claro que o projeto arquitetônico da casa em questão é da própria Lota, que aparece fazendo croquis, dizendo “eu fiz tudo isso aqui” e, ao ser perguntada por Bishop sobre onde ela havia estudado arquitetura, Lota responde: “eu nasci arquiteta”.
 

Não são somente Sérgio Bernardes e Niemeyer que são deliberadamente excluídos da narrativa em função da mitificação da personagem Lota: ela também aparece, na segunda metade do filme, como a única responsável pelo projeto do Aterro do Flamengo. Embora apareçam imagens das elegantes passarelas desenhadas por Affonso Eduardo Reidy (verdadeiro autor do projeto urbanístico do Aterro) e de diversos outros elementos que certamente foram concebidos pela equipe formada ainda por Roberto Burle Marx e outros importantes arquitetos, nenhum deles é mencionado no filme. Lota aparece como a única responsável pelo projeto do aterro – uma super arquiteta-urbanista-paisagista auto-didata.
 

O filme presta, assim, um grande desserviço à história da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo modernos brasileiros.   Coincidentemente, assisti ao filme no Rio de Janeiro, e poucas horas depois estive com a viúva de Sérgio Bernardes, que está tendo um trabalho hercúleo no sentido de resgatar a importância desse importante e pouco lembrado personagem no cenário da arquitetura moderna brasileira. Ela ainda não havia assistido ao filme mas estava, igualmente, indignada, pois já havia recebido dezenas de relatos de outras pessoas igualmente revoltadas.
O filme se baseia em um livro excelente, chamado “Flores raras e banalíssimas”, escrito por Carmen L. Oliveira. Tenho uma edição de 1995, da Editora Rocco, que li há muitos anos, ainda na época da graduação. Assim que voltei para Salvador fui consultá-lo, pois na minha memória ele fazia jus ao papel de Bernardes na construção da casa de Lota e, principalmente, ao protagonismo de Reidy e Burle Marx no Aterro do Flamengo. 

De fato, o filme não é coerente com o livro. Até foto da casa projetada por Sérgio Bernardes aparece lá, em quatro páginas e com a legenda: “A casa de Samambaia: o moderno incrustado na rocha rude. O projeto de Sérgio Bernardes foi premiado na 2a Bienal de São Paulo”). 
Do mesmo modo, o Aterro do Flamengo é ilustrado em diversas imagens. Uma delas, aérea, tem a seguinte legenda: “Em 61, Lota quis converter 1,2 milhão m2 de carrascal num espaço livre ‘onde se pudesse reaprender a arte de andar a pé’. Burle Marx o povoou com 240 espécies diferentes de plantas”.Em outra, Lota aparece sentada ao lado de Bernardes; a legenda diz: “Affonso Reidy, autor do MAM, fez o traçado urbanístico do Parque do Flamengo e criou para ele notáveis peças de arquitetura, como o pavilhão do Morro da Viúva e o viaduto Paulo Bittencourt”. Ao lado desta foto, planta, corte e fotos da maquete do pavilhão do Morro da Viúva e uma foto do “viaduto” Paulo Bittencourt. Em outras fotos, aparecem outros membros da equipe técnica do Aterro: o botânico Luiz Emygdio (que “supervisionou a experiência ecológica pioneira que foi o Parque do Flamengo”) e os arquitetos Gelse Paciello da Motta, Juan Delis Scarpellin Ortega, Julio Cesar Pessolani Zavala e Sérgio Rodrigues e Silva.
 

Enfim, pela repercussão que o filme vem tendo no Brasil e no exterior; pelo desrespeito que representa à história da arquitetura e do urbanismo brasileiros e em respeito à memória de profissionais do quilate de Reidy, Burle Marx, Sérgio Bernardes e Niemeyer, considero que o IAB deveria se posicionar publicamente contra a abordagem do filme e exigir retratação.

Autor: Nivaldo Andrade

 

Mini currículo: Arquiteto e urbanista, mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, onde é professor adjunto e coordenador do curso de graduação em arquitetura e urbanismo noturno. É sócio-fundador da A&P Arquitetura e Urbanismo, com atuação na arquitetura residencial, comercial, institucional e industrial, na elaboração de planos urbanísticos e na preservação do patrimônio edificado. Atualmente, é Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia (IAB-BA), Vice-Presidente Extraordinário da Direção Nacional do IAB, Conselheiro Suplente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA) e Secretário Executivo da Federação Pan-Americana de Associações de Arquitetos (FPAA).