Em entrevista ao e-Arquiteto, o ex-diretor do SASP e atual presidente do Instituto da Mobilidade Sustentável-RUAVIVA, Nazareno Stanislau Affonso, revisita sua trajetória de mais de três décadas dedicadas à luta pelo transporte público de qualidade e traça uma perspectiva sobre a mobilidade urbana no País.

 

Como foi sua formação e como começou seu interesse pela área de transporte público?

 

Formei-me pela FAUUSP em 1972. Fiz parte do grupo que questionava o desenho urbano como transformador da sociedade e também a Carta de Atenas como guia principal da atividade do urbanista. Juntei-me aos que focaram seu trabalho na habitação popular, no desenho urbano das multi funções e usos, na sociologia urbana e no direito à cidade. No quarto ano da FAU entrei na Companhia do Metrô como estagiário. No ano seguinte passei a técnico de transporte quando participei, nesse período, dos estudos de localização de terminais de ônibus ao longo da linha Norte-Sul. Como trabalho de graduação, pesquisei e elaborei as propostas para o transporte público em Osasco-SP. Dei continuidade à minha vida acadêmica fazendo mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas, época em que defendi a tese “Chega de Enrolação, Queremos Condução – Movimentos Reivindicativos de Transporte 1979 a 1982”. A tese foi defendida em 1986 e foi fruto da minha militância junto a esses movimentos sociais. Depois foram 33 anos de trabalho na Companhia do Metrô, onde me aposentei em 2005.

 

E a política, quando entra na sua vida?

 

Nesses 33 anos fui cedido para várias instituições. Primeiramente para a Assembleia Legislativa de São Paulo, para dirigir o Conselho de Transporte do PT (Partido dos Trabalhadores), entre 1985 e 1986, e depois para o SASP em 1988. Em 1989 assumi a Secretaria de Transporte da Prefeitura de Santo André, onde permaneci até 1992. Em 1993, assumo a Secretaria de Transporte de Porto Alegre e, entre 1995 e fins de 1997, fui secretário de Estado do Distrito Federal.

 

Retomando sua carreira no Metrô, quais os pontos altos dessa jornada?

 

Coordenei os planos funcionais da extensão norte da linha Norte-Sul, da linha leste e da linha oeste do metrô, além dos estudos da rede básica do sistema metroviário e da primeira proposta do corredor ABD de ônibus em via exclusiva ligando São Mateus a Diadema e passando por Santo André e São Bernardo. Ainda ajudei a criar e depois a gerenciar, na condição de secretario executivo, a Câmara Metropolitana de Transportes Urbanos por dois anos (1986 e 1987).

 

O senhor também ajudou a criar o Instituto Polis e a ANTP, não?

 

Sim, nesse mesmo período participei da criação do Instituto POLIS e da estruturação da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos), ainda como técnico. Depois fui vice-presidente da entidade por diversas gestões na condição de Secretário de Transporte e também nessa condição fui um dos fundadores, em 1989, do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Transportes e Trânsito. Fui vice-presidente desse fórum por diversas gestões, concluindo como presidente na época da aprovação do Código Brasileiro de Trânsito e da entrega da publicação Transporte Humano da ANTP à presidência da república. Deixando os trabalhos no executivo, mas ainda cedido pela Companhia do Metrô, assumi a coordenação do escritório da ANTP em Brasília e depois da Superintendência da entidade entre 2003 e 2005, quando me aposentei e voltei para Brasília para coordenar o escritório onde permaneço até hoje. Nesse período participei da formação do MDT (Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos), assumindo a condição de coordenador nacional. Ao deixar o Governo do Distrito Federal participei da fundação do Instituto da Mobilidade Sustentável-RUAVIVA em 1999 com sede em Belo Horizonte, onde estou no momento na condição de presidente. Também represento a entidade no Conselho Diretor da ANTP. No momento, também sou conselheiro do Conselho das Cidades do Ministério das Cidades, atuando no Comitê de Mobilidade e Transporte.

 

A gestão do SASP encabeçada por Nabil Bonduki, da qual o senhor fez parte, trouxe muitas mudanças – de paradigma e até de sede – ao sindicato. Como foi viver essa época?

 

Antes de formarmos a chapa de oposição dos arquitetos ao SASP, já havíamos nos organizados para disputar o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) e perdemos por pouquíssimos votos. Finalmente em 1986, ganhando a eleição, fomos o primeiro sindicato que saía da égide histórica do PCB.  Iniciou-se então uma gestão focada em oferecer melhores estruturas de trabalho e encontros da categoria, culminando na viabilização da nossa mudança para a sede da Vila dos Ingleses, em junho de 1988. Destaco como pontos importantes a nossa filiação à CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da ativação da assessoria aos movimentos sociais na produção de casas por autogestão, iniciativa hoje denominada como assessoria técnica. Mas meu trabalho focou na luta contra as ações do governo Jânio Quadros e, mais especificamente, junto aos movimentos reivindicativos de transportes públicos.  Fomos fundadores da ANLUT- Articulação Nacional das Lutas de Transportes e, com representantes de entidades de várias partes do País, fizemos encontros nacionais e desenvolvemos uma carta de reivindicações que contribuiu fortemente na estruturação dos movimentos e também das administrações populares eleitas em 1989, uma das quais na cidade de Santo André.

 

Como é sua atual participação junto ao Fórum Nacional de Reforma Urbana e no Conselho Nacional das Cidades?

 

Estou acompanhando as atividades do FNRU desde sua fundação em 1987, quando ajudei nas propostas para a Constituinte de 1988, em particular nas propostas de transporte, já pelo SASP. Depois estive junto com o FNRU na criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades, sempre focado no tema da mobilidade urbana onde ajudei a estruturar a Secretaria Nacional de Mobilidade e Transporte e lá venho atuando como conselheiro desde 2003, representando a ANTP nas ações do Concidades desde sua formação, também em 2003, e nas reuniões da coordenação do FNRU. Tomaria muito espaço citar as inúmeras resoluções que fizemos defendendo medidas de barateamento das tarifas, recursos para projetos estruturais de transportes, programas de pacificação no trânsito e a luta para termos um marco regulatório da mobilidade urbana. Até o momento os resultados tem sido promissores na mobilidade urbana: investimentos da ordem de R$ 80 bilhões para sistemas estruturais de transportes nos PACs (Programa de Aceleração do Crescimento) da Copa, da Mobilidade em Grandes e Médias Cidades e da qualificação de vias e pavimentações. Infelizmente, devido ao sucateamento dos órgãos públicos sem profissionais mínimos (engenheiros, arquitetos, sociólogos, assistentes sociais, dentre outros), a grande maioria desses recursos não foram liberados para início de obras. Outras vitórias nesses fóruns foram a aprovação da Lei 12.587/12, a lei da mobilidade urbana – marco regulatório -, a elaboração e implantação da Lei Seca no trânsito das cidades, bem como o compromisso do Brasil de entrar na década da redução de mortos no trânsito da ONU (Organização das Nações Unidas).

 

O senhor foi Secretário de Transportes de Santo André na primeira Gestão do Prefeito Celso Daniel, depois na gestão Tarso Genro, em Porto Alegre e no DF, na gestão Cristóvão Buarque. Como foram essas experiências, quais foram os desafios e conquistas em cada administração?

 

A cidade de Santo André foi marcada por mudança radical no sistema de transportes públicos no período de 1989 a 1992. Essas mudanças começaram com uma licitação de todas as linhas. Nesse processo, encapamos uma empresa (30% da frota) e nela criamos uma empresa pública. Em três anos, a avaliação “ótimo e bom”, que era de 5%, passou para 75%. Também reduzimos o número de mortos no trânsito em 13% e concluímos dois viadutos que estavam inacabados há muitos anos. Além disso, foi implantado o conselho de transporte com participação das entidades populares, em particular a associação de usuários de transportes, do qual faziam parte o prefeito, o secretário de planejamento e eu, como secretário de transportes. Em Porto Alegre, iniciei a gestão depois de o governo Olívio Dutra intervir em todas as empresas de ônibus. Os corredores de ônibus estavam sucateados. A gestão se caracterizou pela reforma dos corredores; implantação de abrigos; qualificação do sistema viário; semáforos coordenados; implantação de inúmeros binários de vias; implantação de terminais de integração; qualificação da empresa Pública de ônibus Carris que passou de deficitária para superavitária; fortalecimento dos espaços de participação e elaboração de um planejamento e projetos de corredores que serviram de base para as futuras administrações nos 10 anos seguintes. No Governo do Distrito Federal o principal destaque foi o programa Paz no Trânsito, que reduziu em três anos 50% dos mortos nas vias da Capital Federal implantando pardais (fiscalização eletrônica de velocidade e avanços de sinal) e o respeito à faixa de pedestres. Além disso, foram duplicadas duas rodovias, implantadas inúmeras passarelas, criado o batalhão de trânsito, renovado parte da frota de ônibus, criado o conselho de usuários de transportes e eliminado mais de 1,3 mil veículos clandestinos.

 

Como o senhor avalia as políticas públicas para mitigar o problema da falta de mobilidade nas cidades brasileiras? O que propõe a lei da mobilidade urbana?

O ano de 2012 começou com duas boas novidades para a mobilidade sustentável. Primeiro, a constatação de que não existe solução para abrigar a imensa frota de automóveis, resultado da política de estado de universalizar o uso e a propriedade dos automóveis disponibilizando mais de 90% das vias públicas para os automóveis, subsidiando a gasolina através da CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) Combustível e oferecendo recursos para financiamento de automóveis. Outra boa medida foi a aprovação do que chamamos de Estatuto da Mobilidade Sustentável, a Lei 12.687/12 da Mobilidade Urbana. A lei da mobilidade tem na sua essência a democratização do espaço da via pública, na qual se deve dar prioridade aos modos não motorizados de deslocamento, depois aos transportes públicos e, por último, aos automóveis. E esta via deve ser apropriada conforme a sua utilização. Como os automóveis só realizam em média no Brasil 39% das viagens, a ela só deve ser reservada essa porcentagem para esse meio de transporte. Assim a lei disponibiliza instrumentos para os governos reformarem profundamente a mobilidade em suas cidades, tirando os ônibus dos congestionamentos, eliminando estacionamentos nas vias públicas e disponibilizando-as para aumento de calçadas, ciclofaixas de bicicletas e faixas exclusivas de ônibus. Também defende que devam ser democratizados os espaços públicos de decisão de investimento e gestão, transparência dos cálculos tarifários, exigência de planos de mobilidade para receber recursos federais a partir de abril de 2015, regularização dos contratos dos empresários, dentre outras ações em prol a mobilidade sustentável.

 

O encarecimento dos preços dos terrenos nas regiões centrais das grandes cidades brasileiras tem empurrado as construções de moradias populares para fora da malha urbana.  O problema da falta de mobilidade e acessibilidade devem se tornar mais grave. Imagina como será o cenário das grandes cidades, com a exclusão contínua da população para periferia, longe de seus locais de trabalho?

Esse processo de expulsão da população para a periferia vem acontecendo mesmo antes do crescimento dos preços dos terrenos em áreas centrais. É um processo especulativo que tem espalhado as cidades não só para localização da baixa renda, mas também da classe média e alta com seus condomínios fechados e bairros segregados.Esse cenário se agravou na ditadura militar, com a ação do BNH (Banco Nacional de Habitação), e mais recentemente com o Programa “Minha Casa, Minha Vida”. Não houve a mínima integração entre os programas de habitação, saneamento e mobilidade. Da mesma forma que os recursos dos PAC de mobilidade também foram totalmente desarticulados dos demais. Os casos de São Paulo e de outras cidades que implantaram o bilhete único têm minorado o custo das passagens para os moradores das periferias e pode melhorar muito com implantação dos metrôs, VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos), monotrilhos e corredores monitorados por fiscalização eletrônica ou na modalidade de BRT (Bus Rapid Transit).

 

O aumento do preço das tarifas do transporte público gerou uma onda de protestos em várias cidades brasileiras. Por que o preço das passagens é tão caro no Brasil?

O preço das passagens não é tão caro no Brasil comparado com os da Europa, por exemplo. A questão principal é que o usuário é o único financiador do sistema de transportes por ônibus, que representa 93% das viagens. Já os metrôs, por sua vez, têm subvenção estatal. A questão é tirar das costas dos usuários o pagamento das gratuidades que representa 20% dos custos e desonerar os impostos, que já foram desonerados 7,6% e espera-se que, com o projeto de barateamento das tarifas PLC 310/09, que está em aprovação final na Câmara Federal, sejam em mais 15%. Outra proposta é ter um preço justo do diesel, a 50% do preço atual (significa que ele passaria a ter o mesmo aumento dado a gasolina), o que poderia reduzir os impostos em mais 12%. Finalmente dos ônibus, estando esses fora dos congestionamentos, poderia se reduzir do preço global outros 15 a 20%. Logo, com vontade política é possível reduzir significativamente as tarifas incluindo setores excluídos dos transportes e distribuindo renda.

Em 2005, o senhor lançou uma campanha de conscientização chamada “Ação Nacional Tarifa Cidadã-transporte público com inclusão social”. Qual era o objetivo à época e qual foram os resultados dessa iniciativa?

Essa campanha tinha como base conscientizar a sociedade que era possível reduzir em 50% as tarifas com: 1) justiça social, ou seja, passando as gratuidades para serem pagas pela sociedade; 2) justiça tributária, através da desoneração de tributo e 3) tarifa justa de energia elétrica para sistemas metroferroviários. Essa campanha tinha outdoor, busdoor, cartilhas, cartazes nos ônibus e atingiu cerca de 120 cidades, conscientizando a população usuária de seus direitos. Também refletiu nas ações atuais do governo federal de desonerar tributos e nas propostas do projeto de lei de barateamento das tarifas (PLC 310/09).

Como incentivar o abandono do uso do automóvel com os incentivos do governo à indústria automobilística, combinado a tarifas tão caras, serviços de baixa qualidade e a falta de segurança para os ciclistas no trânsito das cidades brasileiras?

De alguma forma foi respondida na questão da lei de mobilidade, mas vale dizer que temos de fugir do senso comum de dizer que um bom transporte com tarifas baixas faz as pessoas deixarem seus carros pelo transporte coletivo. Acho sim que quando os automóveis deixarem de ter seus privilégios na ocupação das vias para circular e estacionar e levarem o dobro do tempo do transporte público para chegar sem seu destino, os proprietários vão migrar naturalmente para o transporte público.

Havia uma grande expectativa de que a realização da Copa do Mundo trouxesse melhorias nesse sentido, mas até agora poucas obras saíram do papel. Que legado o senhor acredita que o evento vai trazer para as cidades-sede no que tange à mobilidade e acessibilidade?

O legado está dado e as obras de mobilidade não estarão em sua maioria prontas para a Copa, mas não serão canceladas. Logo o legado foi a FIFA obrigar o governo a só financiar obras de transporte público e de transporte não motorizado, indo na contramão da política dominante de privilegiar obras para os automóveis. Agora precisamos resolver o problema das prefeituras na gestão de projetos, obras e depois de operação. Mas teremos garantido, não só as obras do PAC da Copa, mas dos demais, além dos investimentos dos governos de São Paulo (R$ 45 bilhões) e do Rio de Janeiro (R$ 15 bilhões) – que vão depender da pressão social e de recursos para modernização dos órgãos gestores e para qualificar o sistema convencional de transportes públicos (abrigos, ônibus de qualidade, GPS, terminais etc.) – para que possam acontecer com os novos R$ 50 bilhões propostos pelo Governo Federal.

Em novembro acontece o XXXVII ENSA em Goiânia.  O que Goiânia tem apresentado de diferente na mobilidade urbana?

Goiânia tem um dos contratos mais modernos de gestão do setor privado, tem um sistema moderno de controle de frota, plano diretor de mobilidade do município integrado ao Plano Diretor da Cidade e ao Plano Metropolitano de Mobilidade. Está com vários projetos adiantados para implantação de um VLT e vários corredores exclusivos de ônibus, além do corredor universitário onde o ônibus ficou fora dos congestionamentos, aumentando a velocidade dos veículos e reduzindo os tempos de viagem além de qualificar, ao longo do mesmo, a circulação de bicicleta e as calçadas.

Em novembro, acontece a 5ª edição da Conferência das Cidades. O senhor participará do evento? Qual a sua expectativa?

Participarei do evento como conselheiro pela ANTP. Minha expectativa é que a bandeira de “Reforma Urbana Já” aconteça, aprovando a proposta do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) e que as pressões das ruas venham a mobilizar o governo federal e o parlamento para que ele se torne lei, podendo assim permitir avançarmos nas diretrizes e propostas dos marcos regualadores de Mobilidade Urbana, Saneamento e Habitação e Acessibilidade urbana.

O senhor é artista plástico. Como anda essa carreira?

Ela tem se desenvolvido cotidianamente porque faz parte de mim. Não paro de produzi-la, principalmente nas reuniões, telefonemas e mesmo nos seminários. O resultado é que tenho feito inúmeros cursos de arte contemporânea, aulas de desenho e feito inúmeras exposições desde os tempos de estudante de arquitetura como fotógrafo, mas dedicando-me mais profunda e cotidianamente a ela a partir de 2004. Minha arte tem naturalmente forte rebatimento nos temas urbanos, nas cidades e, em particular, na mobilidade e meio ambiente. Visitem meu site nazarenoaffonso.com.br