Fonte: Escola de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal Fluminense | EAU-UFF
A Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense [EAU-UFF] vem se manifestar sobre as declarações de um ator de peso na produção do espaço no contexto carioca, publicadas recentemente nos veículos The Guardian e BBC Brasil.
Entendendo serem os conteúdos dessas declarações bastante graves, os professores da EAU elaboraram uma carta pública como resposta de uma instituição com o papel e a responsabilidade de formação de futuros profissionais em Arquitetura e Urbanismo, e com uma tradição de atuação em seu contexto urbano.
Manifestamos, ainda, nosso estranhamento frente ao silêncio dos veículos locais sobre tais declarações.
Carta Pública:
“A cidade do preconceito”
autoria dos Professores da Escola de Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal Fluminense | EAU-UFF
Reportagens recentes no jornal inglês The Guardian (4 de Agosto, matéria intitulada The Rio property developer hoping for a $1bn Olympic legacy of his own) e na BBC Brasil (10 de Agosto, ‘Como é que você vai botar o pobre ali?’, diz bilionário ‘dono da Barra da Tijuca’) trazem relatos sobre o Rio na sua preparação como cidade olímpica, ilustradas pelas afirmações de um dos agentes com mais poder na sua moldagem, Carlos Carvalho. As declarações de Carvalho nos motivam a escrever esta nota pública.
Ambas as reportagens reconhecem que o Rio está desenvolvendo esta área para um mercado de ‘alto padrão’. Sentado em frente a um busto de Napoleão e ao lado de um mapa enorme da Barra, o incorporador Carlos Carvalho afirma que, se os padrões de construção fossem rebaixados, “a nova cidade” ficaria comprometida, deixando de representar no cenário global uma “cidade da elite, uma cidade de bom gosto”. A Barra, segundo o incorporador, precisa de empreendimentos residenciais nobres, não habitação para os pobres.
Esta visão parece expressar a opinião não declarada de muitos. Sabemos que questões fundiárias inviabilizaram o acesso ao solo urbano aos mais pobres no passado, uma dificuldade impressa dramaticamente na paisagem do Rio de Janeiro. Tal visão para o Rio de Janeiro e a Barra em particular lembra ainda as reformas urbanísticas e as práticas higienistas iniciadas no final do XIX, como a eliminação dos cortiços. O Guardian reporta corretamente que parte desta área é ocupada pela Vila Autódromo, uma comunidade com um rico e diverso tecido social que, embora tenham a propriedade legal de sua terra, estão sendo expulsos sob a ordem de justificação das Olimpíadas. É importante destacar que, em 2014, um plano de urbanização desenvolvido por um grupo de professores da UFF e UFRJ com os moradores da Vila Autódromo foi agraciado com o prêmio internacional Urban Age, organizado pela prestigiada London School of Economics (LSE).
Temos acompanhado os diversos tipos de violência (simbólica, policial, econômica) perpetradas em nome da construção da cidade olímpica. Surpreendente nas reportagens citadas é a forma como é revelada a articulação entre os interesses imobiliários e a administração pública municipal, uma expressão do novo projeto de cidade (de exceção) que vem se tornando exemplo emblemático para diversas administrações mundo afora, mostrando o impressionante poder político de promotores imobiliários e sua coalizão com a esfera do planejamento municipal.
A ordem para as remoções, dada pelo prefeito Eduardo Paes no começo do ano, teria ajudado o incorporador, como ele admite. Seguem informações sobre as alterações no Plano Diretor da região executadas nos 3 primeiros meses do segundo mandato de Paes, alterando a altura máxima permitida de 12 para 18 andares – tendo como contrapartida a doação por parte da empresa Carvalho Hosken de área e divisão de custos dos 480 milhões de dólares dos centros de mídia dos Jogos. Uma entrevista anterior, publicada em O Globo [25/06/2015], confirma esses benefícios: “Realmente fui muito ajudado pela vinda dos Jogos para a cidade, pois isso combateu um dos problemas mais sérios da região, que era a falta de infraestrutura de serviços, em setores como água, energia e esgoto, além do transporte”. O incorporador complementa: “Estamos fazendo algo elitizado”. Ele argumenta que a população mais pobre teria de ser removida para habitações do seu nível – fora das áreas nobres da cidade, na periferia, enquanto a elite deve permanecer nas áreas centrais.
O arranjo e a naturalidade do discurso nada tem de novo, mas surpreende o modo como é explicitada uma forma de construir a cidade: o “natural” lugar das classes sociais no espaço urbano. Vila Autódromo? Não é uma questão de urbanização de um assentamento informal nas margens de uma lagoa. Seus moradores estão, na visão do promotor imobiliário, obviamente fora do lugar: aquele não é o lugar deles. Tudo isso é dito de forma objetiva – Carvalho não usa subterfúgios ou meias palavras para dizer o que pensa. Em nosso país, onde as falas não costumam corresponder às ações, as entrevistas são fascinantes: é raro ter acesso à visões tão claras do que está em jogo na construção do espaço urbano. O fato de Carvalho ter exposto uma visão não assumida mas praticada permite que outros atores sociais se referenciem e reajam – alimentando um debate público, e muito necessário, sobre que sociedade e que cidade temos e desejamos ter.
Gostaríamos de contribuir para esse debate falando das sérias implicações dessa visão exposta tão explicitamente. Na cidade da elite, há uma ordem desejada, uma divisão social e urbana. Essa manifestação preconceituosa reflete e naturaliza – perigosamente – uma leitura cada vez mais comum e pública no Brasil: a diferença entre ricos e pobres, desejados e indesejados, claramente demarcados espacialmente. Esse discurso ecoa as distinções e discriminações entre etnias e a definição totalitária de seus territórios nas cidades. Ao estabelecer a priori o lugar das pessoas, essa visão estabelece uma rejeição franca do direito à cidade – aos benefícios como a acessibilidade e proximidade, e seus impactos comprovadamente positivos sobre renda e produtividade das pessoas. Rejeita ainda o sentido histórico da cidade como lugar do convívio de pessoas diferentes entre si, e a importância desse convívio para promover um entendimento da sociedade como complexa, incluindo aqueles diferentes de nós. A opção da cidade da elite tem sido a de afastar essas diferenças em nome da geração de um núcleo de sociedade ideal – mas distante do desenvolvimento de uma sociedade democrática, porque rejeita a noção plena de urbanidade como convívio dos diferentes.
A visão da cidade da elite ignora algo que sociedades apreciadas pela elite brasileira (como a americana) já sabem: há evidências crescentes de que cidades com mais mistura social e étnica tendem a ser mais criativas e inovadoras, em função da proximidade de pessoas com diferentes visões e culturas. Mais gravemente, ignora os custos sociais e urbanos a curto, médio e longo prazo, como o fato da arquitetura produzida emblematicamente na Barra da Tijuca, com suas ilhas condominiais, seus muros, as grandes distâncias entre seus edifícios e a baixa diversidade de suas atividades, têm impactos negativos: inibem o uso pedestre das ruas e estimulam visivelmente a dependência do veículo. A cidade elitista não só tem menos pedestres: ela polui mais, gera mais engarrafamentos e tende a aumentar a insegurança no espaço público.
Nossa elite parece firme em sua ilusão de que a segregação espacial vai levar a uma sociedade pacificada e segura (ao menos para si). Perguntamos àqueles que querem criar essa “cidade da elite” no Rio de Janeiro: até quando a elite brasileira vai imaginar que pode se reproduzir em cativeiro?
Professor Luiz Renato Andrade e colegas, Diretor
Laura Elza Gomes, Coordenadora
Escola de Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal Fluminense
Niterói, Rio de Janeiro