Diante da grave crise política, econômica e institucional que vive o país, dirijo-me aos que, como eu, estão preocupados com essa situação e desejam ver uma saída o mais rápido possível.
Aos que, como eu, se entusiasmaram com a possibilidade de imaginar o tal país do futuro chegando, com mais oportunidades e menos desigualdade, com uma democracia na qual todos pudessem ter direito a ter direitos.
Também me dirijo aos que, como eu, se decepcionaram ao descobrir que a trilha das mudanças estava cada vez mais implicada no caminho da continuidade. Continuidade do quê? Da política como negócio.
Com isso, não estou me referindo apenas aos votos como mercadoria política, nem mesmo somente à corrupção, ou seja, o uso de cargos públicos para enriquecimento pessoal ou para o financiamento do mercado de votos.
Estou me referindo a algo mais estrutural e duradouro em nosso país: à apropriação do que é público (recursos, bens comuns) por interesses privados, por meio de processos que envolvem empresas, bancos e grupos privados, e que contam com participação ativa de políticos e gestores públicos, por meio do controle de cargos, e também com forte atuação do Judiciário.
Refiro-me à enorme dificuldade –marca de nossa história predatória e escravista– de até mesmo construir as noções de bem comum e de universalidade de direitos, conceitos tão fundamentais para a democracia que, justamente por isso, não conseguimos ainda consolidá-la.
BODE
Pois bem, nos decepcionamos porque o PT e a coalizão que liderou não apenas não foram capazes de romper com esta lógica, como também ajudaram a fortalecê-la durante os anos de construção de sua hegemonia política –estratégia adotada para viabilizar seu triunfo eleitoral, assim como a implantação de sua política de distribuição de renda e construção de um ainda incipiente estado de bem-estar social no país.
E agora?
Em pleno 2016, não consigo deixar de comparar o que estamos vivendo hoje com a situação da Alemanha do início da década de 30 do século passado: crise econômica e política e, diante dela, a emergência de uma solução fascista: buscar um culpado, apontar um responsável e mobilizar as massas para execrá-lo, ativando ódios e preconceitos.
Hoje este “bode” se chama Dilma, Lula ou PT.
Ora, não é preciso muita profundidade analítica para saber que a saída de Dilma ou do PT do governo não resolve minimamente o tema da política como negócio que tanto nos revolta. Muito menos a necessidade de aprofundamento da democracia, quando, em nome da execração pública dos “culpados”, afronta-se, justamente, a institucionalidade democrática.
Mas, do ponto de vista da onda conservadora (que deseja manter e aprofundar esse modus operandi do Estado brasileiro), é absolutamente central construir a ideia de que todas as aflições –reais– que vivemos hoje serão resolvidas com o impeachment da presidente Dilma.
MORALISMO RETRÓGRADO
Para o conservadorismo, é absolutamente central construir o espetáculo da culpa e com ele nos entreter, enquanto no Congresso e no debate público avançam pautas de desconstituição de direitos, criminalização de movimentos sociais, privatização de bens comuns, entre outras, muitas vezes protagonizadas pelo próprio governo, que luta para não perder bases alimentadas por um moralismo retrógrado.
E nós, que não aceitamos esse espetáculo, que já vimos esse filme antes na história e sabemos aonde ele pode chegar, o que podemos fazer?
Antes de mais nada, afirmar que não existem apenas dois lados nesta crise: os “coxinhas” e a “turma do PT”.
Tenho certeza de que aceitar esse jogo binário é compactuar com a máquina mortífera da onda conservadora que não quer distribuir nada da renda, nada do poder, que preferiria ver os negros nas senzalas, os LGBT no paredão e as mulheres na cama e na cozinha, e que estão pouco se lixando se a água acabar, se florestas forem derrubadas, se povos tradicionais desaparecerem.
Para estes, o território –urbano e rural– é pura fonte de remuneração do capital financeiro investido, e pouco importam temas prosaicos como a cultura, a memória, as necessidades e os direitos de todos.
Diante da crise, nosso papel é resistir sem medo, defendendo o que já construímos, e apostando, sim, nas possibilidades de formulação e experimentação de alternativas que apontem para um outro futuro.
*Publicado originalmente no site da Folha no dia 16/3/2016.