Somente quando alcançou as disciplinas voltadas ao planejamento urbano que a faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Mackenzie, em São Paulo, passou a fazer sentido para Kelly Cristina Fernandes Augusto. A permanência no curso concluído em 2014 se deu graças à proximidade com os temas voltados à cidade. “A partir dali tudo começou a fazer sentido, pois até então tinha dificuldade em entender o que a Arquitetura e Urbanismo tinha a ver com a minha vida, por eu ser uma mulher negra e periférica”, relata Kelly. O conflito se dissipou – e a afastou definitivamente dos planos de cursar Direito ou Relações Internacionais – quando conheceu o planejamento urbano, a habitação de interesse social, as desigualdades sociais e os contrastes da periferia. “Comecei a me enxergar dentro do curso, a entender minha inserção social, o que me estimulou a seguir em frente”, conta a arquiteta e urbanista de 31 anos.

A trajetória profissional começou com um estágio no Conselho de Política Urbana da Associação Comercial de São Paulo, seguida pela passagem por um consultoria de engenharia e transporte – onde permaneceu por 2,5 anos como estagiária e 6 meses como trainee. “Lá, auxiliava as equipes no desenvolvimento de projetos funcionais de estações de metrô, terminais e corredores de ônibus.” Nesta etapa profissional teve a oportunidade de atuar em duas áreas: projetos funcionais e na parte ambiental. “Tive contato com trabalhos voltados à acessibilidade urbana, paisagismo e estudos de impacto de vizinhança. Foi uma época muito intensa”, recorda.

Já formada, na consultoria TcUrbes, de São Paulo, por quatro anos Kelly participou de planos de mobilidade em várias cidades do país, de diferentes desenhos e realidades urbanas. Lá pôde constatar que os gargalos diferem bastante de cidade para cidade, considerando as proporções populacionais e habitacionais. Em comum, a realidade do avanço da motorização (carros e motos) por conta, essencialmente, da ausência de transporte público eficiente para atender à demanda de deslocamentos. “Essa é uma realidade urbana e rural muito negligenciada, que passa também pela extensão do perímetro urbano de uma forma bastante inconsequente, fato que estimula mais a deflagração de conflitos pré-existentes”, afirma.

Hoje morando no Centro de São Paulo, Kelly Cristina percebe as grandes distorções entre as áreas de uma mesma cidade. Mas é saudosa ao lembrar o tempo em que morava na periferia da capital paulista. “Mudou minha vida em termos de dinâmica, mas sair da periferia foi um processo bastante conturbado. Gostava de estar lá, meus amigos estão lá, a vida cultural na periferia é bastante rica, apesar da falta de recursos e de apoio”, conta.

Adepta da bicicleta e de caminhadas, alterna sua forma de ida à sede do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, onde atualmente trabalha como Analista de Mobilidade Urbana. Lá, desenvolve pesquisas sobre inúmeros temas junto a 12 capitais brasileiras mais populosas, entre os quais transporte coletivo por ônibus e direitos dos usuários, muitos em cooperação com ONGs, coletivos e movimentos sociais. “Em 2015, o direito social ao transporte foi incluído na Constituição, então temos trabalhado muito sobre esse eixo”, diz.

Paralelamente, Kelly tem bem claro o seu lado ativista. No passado recente, se viu angustiada por não estar próxima às pessoas e por ter se afastado do diálogo com a sociedade. Com medo dos efeitos desse distanciamento, começou a se envolver em movimentos sociais. Iniciou pela Cidadeapé, associação paulista que luta pelos direitos dos pedestres. “Para mim foi importante estar em rodas de conversa com pessoas com formação diversa que querem discutir a cidade e lutar por alguma coisa.”

Sua trajetória no Cidadeapé abriu as portas para o ingresso em outras importantes iniciativas. A de maior evidência foi sua colaboração na construção do eixo de Mobilidade de Transporte da Agenda BrCidades, lançada neste mês, em São Paulo. Como arquiteta e urbanista, ainda expressa sua representatividade em entidades como o IAB/SP, onde ocupa a suplência do Conselho Superior na chapa eleita 2020/2022.

O que elas querem das cidades

– Ciclovias que atendam à dinâmica feminina, com trajetos que favoreçam a mobilidade em direção a escolas, supermercados e hospitais, por exemplo.
– Acessibilidade que permita o trajeto nas ruas mais locais, de bairro, com calçamento adequado (para o deslocamento com carrinhos de bebê, por exemplo), rampas de acesso e boa iluminação
– Integração do transporte público – a pé, ciclovias, ônibus e metrô. Se algum desses trechos for ‘capenga’, o sistema não funciona.
– Bilhetes para crianças para evitar que passem por baixo da roleta em ônibus, causando bastante constrangimento e dificuldades às mães.
– Maior representatividade feminina em lugares onde as decisões sobre a cidade são tomadas: câmaras de vereadores, escritórios de planejamento, conselhos, etc