Em meio à maior pandemia da história recente do Brasil, a falta de condições das casas brasileiras como agente de saúde pública da população vem ganhando a relevância que merece. Sem saneamento, água encanada ou ventilação natural, a residência de boa parte da população brasileira é terreno fértil para a proliferação do coronavírus, inviabilizando o isolamento e até as recomendadas práticas de higiene. De acordo com a coordenadora do BR Cidades e professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Erminia Maricato, as favelas brasileiras convivem há décadas com epidemias causadas pelo descaso do poder público. Doenças como dengue, cólera, disenteria, esquistossomose e leptospirose são algumas dessas enfermidades que reincidem pela falta de estrutura urbana. “O nosso país possui na condição estrutural da habitação social uma situação que mata as cidades. Sem Reforma Agrária, o campo veio para as metrópoles sem condição ou estrutura alguma”, explica. Segundo levantamento de 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), aproximadamente 18,7 milhões de domicílios urbanos não contam com os três serviços básicos de saneamento: conexão à rede de esgoto, coleta de lixo e água encanada.
O drama se reflete em números. O governo estadual do Rio de Janeiro – Estado com a maior quantidade de pessoas morando em favelas segundo o último Censo Demográfico do IBGE – aponta que os casos confirmados já chegam a 3.743*. Desses, 2.393* estão localizados na capital do Estado, sendo que 35 deles estão na Rocinha (zona sul), oito na comunidade de Manguinhos (zona norte), cinco no Complexo da Maré (zona norte), cinco na Cidade de Deus (zona oeste), três no Vidigal (zona sul) e um no Complexo do Alemão (zona norte).
Uma das maiores críticas de Erminia, que atuou como secretária-executiva do Ministério das Cidades entre 2003 e 2005, é a política de retrocesso na habitação social da população de baixa renda. Segundo ela, na época, o ministério buscou investir nos jovens, propondo um projeto de cultura urbana para as cidades. Com a entrada de Michel Temer e a eleição de Jair Bolsonaro, a arquiteta e urbanista pondera que houve uma inversão de valores, colocando as pessoas de maior vulnerabilidade social novamente em segundo plano. “As nossas cidades estão regredindo mesmo considerando que a condição social melhorou com o Bolsa Família, diminuindo o cenário de fome e miséria no país. Só que apenas a distribuição de renda não é suficiente para garantir o direito à cidade. A falta de moradia digna traz problemas que vão da desigualdade social à saúde pública”, afirma.
Erminia lembra que, na década de 1970, quando militava nas comunidades eclesiais de base da Prefeitura de São Paulo, viveu uma experiência com uma moradora local que lhe marcou. “Ela era uma líder comunitária, jovem, mãe e não perdia nenhuma reunião. Até que um dia ela não apareceu e eu resolvi investigar. Chegando na casa dela, ela me explicou que ia com frequência ao hospital por causa dos problemas respiratórios do filho. Quando entrei no quarto da criança, percebi um ambiente absolutamente fechado, sem janela, úmido e cheio de mofo”, conta. A solução apontada pela arquiteta e urbanista foi uma abertura zenital – técnica utilizada para permitir que a luz natural penetre no ambiente através de pequenas ou grandes aberturas criadas no teto. “Problemas como esse têm solução, mas a eficácia necessita do olhar e acompanhamento de um profissional”, completa.
Mas, afinal, qual o caminho para transformar a casa em um agente de saúde pública? A resposta a essa pergunta é complexa e inclui a necessidade de recursos e políticas públicas para a habitação popular. Mas há algumas questões que são essenciais para assegurar a saúde das famílias e que estão ao alcance de todos. Para o vice-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Ormy Hütner Jr, ampliar o espaço de janelas, aumentar o acesso da luz natural, abandonar as cortinas e substituir carpetes ou tapetes por pisos e tablados são algumas das dicas que podem diminuir a proliferação de bactérias e ácaros nas residências. “A ventilação natural e a radiação solar são alguns dos fatores mais simples que ajudam a remover os poluentes existentes em nossos edifícios”, afirma. Apesar desses elementos acessíveis, o arquiteto e urbanista reforça que alguns problemas mais complicados necessitam de atenção. É o caso das moradias que lidam com o mofo, causado principalmente por infiltrações na cobertura (telha quebrada ou calha sem funcionamento) e pela umidade proveniente do contato com o solo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 30% de todas as edificações no mundo causam algum tipo de enfermidade nos seus usuários. E assim o termo Síndrome do Edifício Doente se tornou mais difundido, principalmente para garantia da Qualidade do Ar Interno das edificações.
Outros problemas comuns pontuados por Ormy Hütner Jr é em relação à umidade do ar e até mesmo à dificuldade de produção de hormônios durante os períodos de descanso, como a melatonina, causada por alguns ambientes. Em função de muitos materiais utilizados nas construções brasileiras não permitirem a troca de vapor de água entre ambientes externos e internos, essas moléculas de água, em forma de gás, se condensam, ou seja, mudam para o estado líquido em contato com superfícies que criam essas barreiras permitindo o desenvolvimento de microrganismos que serão prejudiciais à saúde dos usuários. Os banheiros são um dos exemplos onde esse cenário é bastante corriqueiro. Já a produção insuficiente de melatonina é causada por excesso de estímulos provenientes da iluminação artificial e equipamentos emissores de luz. Lâmpadas com alto brilho e brancas, ruídos externos, janelas que não fecham completamente e permitem a entrada de iluminação externa, televisão, smartphones e computadores são alguns dos responsáveis por esse excesso de estímulo, prejudicando a produção de alguns hormônios essenciais para a manutenção de um sistema imunológico eficiente e recuperação do corpo durante a noite. “Cuidar do quarto é essencial, esse é o local onde devemos repousar. Evitar elementos que podem prejudicar o sono também é cuidar da saúde”, ressalta.
Recomendações e intervenções arquitetônicas e urbanísticas como essas são a base do trabalho embrionário realizado por muitos arquitetos e urbanistas que operam com a Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS), lei que, há dez anos, existe para garantir moradia digna às famílias mais vulneráveis do Brasil, mas que, infelizmente, ainda engatinha. Há, inclusive, uma proposta de integração desses projetos ao Sistema Único de Saúde (SUS), que tem a capilaridade necessária para levar esse conceito de saúde da casa como ferramenta de “reempoderamento” das periferias, com líderes ativos e associações de bairros organizadas. “Na Athis, o discurso técnico e as políticas públicas precisam andar lado a lado”, pondera Hütner Jr.
Hoje, sem um plano do governo ou ações efetivas, o que resta aos moradores e associações de bairro é unirem-se para levar informação às comunidades. No Complexo da Maré, que possui 140 mil pessoas em suas 16 favelas, um carro de som com uma batida de funk ao fundo tem alertado a população sobre os riscos da Covid-19. A iniciativa é uma parceria da ONG Redes da Maré, do Coletivo Papo Reto e da associação de moradores da comunidade, com o apoio da Fundação Oswaldo Cruz. Outra movimentação das periferias levou uma hashtag a ficar entre os assuntos mais comentados do Brasil no Twitter. Com vídeos, fotos e relatos, a hashtag #Covid19NasFavelas tornou público casos de negligência nas comunidades.
Com informações da BBC Brasil
* Dado atualizado até às 18h do dia 15 de abril de 2020
Foto: brunomartinsimagens/Istock