O #fiqueemcasa, orientação símbolo do isolamento social no Brasil e no mundo, só faz sentido para quem tem casa. Se o cumprimento à risca dessa orientação em favelas já é praticamente impossível diante da densidade de moradores das áreas periféricas e das condições precárias de milhões de habitações nos centros urbanos das cidades, o que dizer de quem tem um teto e o perde da noite para o dia? Apesar da importância da casa no enfrentamento da pandemia, muitos moradores estão tendo sua dignidade atacada, com descumprimento do que prega a Constituição, que classifica a moradia como um direito essencial do cidadão. Na contramão desse direito constitucional, processos de reintegração de posse e despejos permanecem à luz da pandemia.

Nesta terça-feira (16), está acontecendo a remoção de aproximadamente 900 famílias no Bairro Roseira 2, no Distrito de Guaianases, na Zona Leste de São Paulo, através de uma reintegração de posse. Mesmo em plena pandemia, todo o processo acontece em caráter de urgência sem que as famílias tivessem tempo para conseguir um advogado para sua defesa. E nem mesmo a oferta de uma alternativa habitacional.

Outros exemplos recentes vêm de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Em São Bernardo do Campo (SP), 11 famílias da Vila São Pedro tiveram suas casas demolidas após determinação da Justiça com base em pedido da prefeitura da cidade do ABC. Sem um aviso prévio, os moradores foram obrigados a retirar seus pertences rapidamente para que não fossem levados por patrolas. Também em Ribeirão Preto (SP), a Justiça determinou que 200 famílias moradoras da comunidade Vila União deixassem a área que pertence à prefeitura municipal. Em Viamão, Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), cerca de 130 moradores do Residencial Castelo, no bairro Santa Isabel, estão ameaçados de despejo. Uma decisão judicial de reintegração de posse, emitida em 20 de maio deste ano em favor da proprietária do terreno, dá ás famílias o prazo de até 90 dias para se retirarem do local. O terreno está ocupado desde 2007 e, antes disso, era destino de lixo e depósito de objetos abandonados.

Diante da crise sanitária instalada no País, onde mais de 44 mil pessoas já perderam a vida, é urgente que o Poder Público em todos os seus níveis proteja as comunidades mais carentes com o fim de ações desumanas que agravam ainda mais a situação de famílias vulneráveis e contribuem para a disseminação da doença entre os mais pobres. Diversas ações da sociedade civil já foram realizadas com esse intuito. Logo após o início da pandemia no Brasil, em março, a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), em conjunto com o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) lançaram manifesto nacional com um apelo às autoridades para que suspendessem por tempo indeterminado toda e qualquer iniciativa de despejo e reintegração de posse por decisões judiciais e extrajudiciais. De acordo com a presidente da FNA, Eleonora Mascia, o Brasil tem milhares de pessoas que habitam áreas com este perfil, e a remoção neste momento significa, além de um ato desumano, o alastramento da doença entre pessoas que já convivem com a desigualdade social em todos os seus níveis. A presidente do IBDU, Betânia Alfonsin, reforça que a luta das entidades é pelo despejo zero. “Uma ação que a qualquer tempo já é um escândalo se torna ainda pior neste momento. Essa é uma campanha muito importante e que precisa de grande repercussão”, frisou durante a live Meia Hora com o BrCidades.

Segundo o coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Allan Ramalho Ferreira, houve uma representação assinada por diversas entidades junto à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que fez requerimento ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo a suspensão temporária das remoções. Apesar de não ser um órgão com função jurisdicional, administrativamente pode recomendar ao tribunais regionais que suspendam as reintegrações de posse. No entanto, poucos foram os tribunais que seguiram esse entendimento.

Em São Paulo, onde atua, Ferreira acompanhou recentemente o processo de reintegração de posse em área localizada em Piracicaba. “Nos manifestamos no processo solicitando a reversão da ordem judicial de despejo das famílias. Justificamos o momento da pandemia, citamos a Organização Mundial de Saúde e outras autoridades, onde o mérito do pedido era quase mais médico do que jurídico. Mas a juíza não entendeu dessa forma, viu urgência na reintegração de posse e manteve a ordem”, relata o defensor público.

Para Ferreira, as reintegrações de posse, especialmente as deferidas por juízes, carecem de um olhar mais humanitário que não fique centrado apenas na preocupação com o direito do proprietário. Algo já contemplado pela Resolução N° 10/2018, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que trata de soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos, reduzindo os conflitos por terra e as violações de direitos humanos. “Falta um raciocínio mais complexo dos tribunais. Precisa retirar as pessoas? Ok, Mas elas também têm direitos e quase sempre fazemos uso do direito urbanístico para sustentar nossas manifestações processuais” afirma, citando a assistência técnica de interesse em habitação social ou casos em que as famílias habitam as áreas por mais de cinco anos. “Muito da defesa é com base na legislação urbanística , que protege essas pessoas, assim como os direitos humanos e os direitos fundamentais”, destaca.

Apesar de prevalecer o antagonismo entre os interesses das famílias e dos proprietários, Ferreira acredita que é possível promover conciliação entre os lados – com planejamento, discussão e, principalmente, com um olhar mais humanizado da Justiça. “Existem muitas alternativas: prorrogar o prazo de desocupação, permitir financiamento para que as terras sejam compradas pelas famílias, financiamento a baixo custo, aluguel solidário, remoção humanizada e planejada para que não haja uma ruptura brusca dos moradores com suas raízes”, pontua o defensor público.

PL 413/2020, um ataque ao Estatuto da Cidade e à legislação urbana

Também com reflexos na legislação urbanística, o PL 413/2020 avança no Congresso Nacional com o intuito de alterar as leis 10.257/2001, 13.465/2017 e 6.766/1979, leis gerais de direito urbanístico, cuja iniciativa legislativa é de competência exclusiva do poder executivo. Os autores da matéria, deputados federais Vinícius Poit (Novo/SP), Kim Kataguiri (DEM/SP) e Paulo Ganime (Novo/RJ), propõem que empresas, pessoas físicas, associações de moradores e outros tipos de entidades privadas possam apresentar projeto de regularização fundiária e urbanística em áreas de propriedade pública ou privada. Hoje, somente as prefeituras podem propor regularização de lotes. Nota conjunta assinada por diversas entidades da área de arquitetura e urbanismos, entre elas a FNA, se posiciona contrária ao projeto por promover profundas e nefastas alterações normativas, com severos reflexos negativos na ordem urbanística.

De acordo com a nota, o projeto, na prática, anula diversos instrumentos do Estatuto da Cidade, ao submetê-los à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), além de incluir novo instrumento denominado “gestão compartilhada”, que terceiriza a política pública. Permite, também, que lei ordinária municipal possa alterar o espaço público, o parcelamento, edificação e uso do solo previstos no plano diretor, no bojo de programas e projetos habitacionais, desvirtuando a forma e o processo de produção do espaço urbano. Da mesma forma, promove alterações na Lei 6.766/79 (Lei de parcelamento do solo urbano) de modo a anular a competência dos municípios ao prever a aprovação tácita de parcelamentos do solo, e vedar a previsão de lote mínimo pelo Poder Público.

Além disso, pretende, ainda, alterar a recente Lei 13.465/17 a fim de incluir dentre os legitimados para a execução da Regularização fundiária Urbana (REURB), a iniciativa privada, incluindo a possibilidade de cobrança pela regularização fundiária, mesmo da população mais miserável. “Trata-se de afronta aos princípios mais basilares da política urbana, com a transformação da regularização fundiária em mercadoria a ser vendida aos mais vulneráveis”, destaca o documento.