O Dia Mundial do Habitat, comemorado nesta segunda-feira (5/10) como parte da celebração global instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1986, no Brasil é de luta por direitos e conquistas fundamentais. Neste ano, o contexto de déficit habitacional histórico que atinge 6,3 milhões de moradias, segundo último dado da Fundação João Pinheiro (2015) vem acompanhado de uma triste estatística: mais de 6 mil famílias brasileiras foram despejadas de suas casas desde o início da pandemia, segundo relatório do Observatório das Remoções e de Defensorias Públicas com dados colhidos entre 1º de março e 31 de agosto. O mapeamento foi realizado pelas mais de 40 entidades que fazem parte da campanha #DespejoZero, lançada em julho com o intuito de garantir a suspensão dos processos enquanto durarem as medidas de combate à pandemia de Covid-19.
A medida tem como alvo famílias já em situação de vulnerabilidade social e não atendidas por políticas públicas habitacionais e se torna mais perversa no momento em que a orientação mundial para combater a contaminação por coronavírus é o de ‘ficar em casa’. O mapeamento mostrou que reintegrações de posse, conflitos com proprietários e impactos devido a obras públicas foram as justificativas para que os despejos fossem realizados. Numa radiografia nacional, o Amazonas concentrou, até agora, 47% dos despejos, com 3 mil casos denunciados, seguido de São Paulo, com 1.600. Também foram constatadas remoções em Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Roraima, Paraná, Santa Catarina, Maranhão, Rio Grande do Norte, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Diversas ações da sociedade civil já foram realizadas com o intuito de barrar as remoções. Logo após o início da pandemia no Brasil, em março, a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), em conjunto com o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), lançou manifesto nacional com um apelo às autoridades para que suspendessem por tempo indeterminado toda e qualquer iniciativa de despejo e reintegração de posse por decisões judiciais e extrajudiciais. A ação segue a mesma orientação emitida por organismos internacionais como a OMS e a ONU. “O Brasil possui milhares de pessoas que habitam áreas em situação de conflito e expostas à desigualdade social. E nada foi feito para impedir a remoção dessas famílias durante a maior crise sanitária do país e do mundo”, destacou o vice-presidente da FNA, arquiteto e urbanista Ormy Hütner. Segundo ele, o coronavírus ainda traz outro lado preocupante: “o aumento do desemprego, a redução de salários e a perda de direitos trabalhistas foram processos acelerados durante a crise.” Isso significa que milhões de brasileiros tiveram que priorizar o alimento na mesa em detrimento do aluguel e do financiamento da casa própria.
Nos últimos anos, diversas medidas do governo federal acabaram por desmontar políticas públicas e agravar ainda mais a desigualdade social, como o congelamento dos gastos públicos, a paralisação das contratações do programa Minha Casa, Minha Vida, além da inoperância de conselhos estaduais e municipais e do Conselho Nacional das Cidades, colegiados com a participação da sociedade civil nas discussões sobre as demandas das comunidades. Traduzindo em números, o Brasil agrega, anualmente, 1,2 milhão de novos domicílios no cômputo do déficit habitacional. Além disso, são 5 milhões de moradias localizadas em favelas e 9,6 milhões de domicílios inadequados, que não dispõem de pelo menos um desses serviços básicos: energia elétrica, rede interna de saneamento, rede de esgotos ou fossa sanitária e coleta de lixo.
A realidade do que acontece no Brasil contrasta com a Nova Agenda Urbana, definida há quatro anos na Conferência Habitat III da ONU, onde foram definidos 30 pontos fundamentais que precisam ser adotados pelas Nações visando uma política inclusiva com o fortalecimento de políticas públicas urbanas. As 30 ações-chaves estão divididas em cinco campos: Política Urbana Nacional; Legislação Urbana; Planejamento e Projeto Urbano; Economia Urbana e Finanças Municipais; e Extensões / Renovações Urbanas Planejada.
De acordo com o secretário de Políticas Públicas e Relações Institucionais da FNA, Patryck Carvalho, a pandemia não apenas agravou a crise habitacional no Brasil, mas deixou claro os resultados de ações governamentais que não priorizam investimentos na área social. “Pelo contrário, o que vemos é a chamada austeridade fiscal, retirando recursos públicos da saúde, educação, produção habitacional, urbanização de favelas, saneamento e mobilidade. A EC 95, de 2016, estabeleceu o chamado teto de gastos, ferindo de morte o pacto social da Constituição de 1988. Esse pacto social reconhece e coloca na Constituição os direitos sociais, que são a saúde, a educação, a alimentação, a moradia, o transporte, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, o lazer, a segurança, a assistência aos desamparados. Com a pandemia, as desigualdades sociais ficaram escancaradas”, destacou.
Carvalho reforça também que as reformas trabalhistas não produziram os empregos anunciados e, hoje, são 13 milhões de desempregados. “Sem políticas públicas pautadas por consistentes investimentos sociais não há como falar de habitação para todas e todos e nem de futuro urbano melhor.”
Desta forma, o lema que a ONU-Habitat definiu para as ações e reflexões no dia do Habitat – “Habitação para todas e todos, um futuro urbano melhor” – se mostra pertinente para enfrentar a pandemia e suas consequências. “No Brasil, esse lema poderia ser adotado como um dos eixos das candidaturas às prefeituras municipais. Pois é preciso lembrar que quase 85% da população brasileira vive nas cidades”, afirma o secretário de Políticas Públicas da FNA. De acordo com o arquiteto e urbanista, são 57,4%, ou 120,7 milhões de habitantes que se concentram em apenas 5,8% dos municípios (324 municípios).
Garantir um “futuro urbano melhor” para brasileiras e brasileiros, de todas as idades e classe sociais, é um dos desafios para os próximos anos. A FNA propõe que arquitetos e urbanistas atuem fortemente na elaboração e construção dos projetos e planos que viabilizarão “habitação para todas e todos” e “um futuro urbano melhor”.
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