As irregularidades no mercado de trabalho atingem, em um momento ou outro, a grande maioria dos arquitetos e urbanistas. Trabalho informal, jornada excessiva, remuneração abaixo do piso salarial e exploração entre os próprios colegas são práticas apontadas em recente pesquisa que avaliou a rotina desses profissionais no município de Niterói (RJ) e que é vista como amostra relevante do mercado brasileiro. O levantamento, conduzido pela arquiteta e urbanista Aline Santiago na Universidade Federal Fluminense, constatou que a maioria dos entrevistados não encontra sustento na arquitetura e que 74% já trabalhou de forma irregular. “Mesmo os que estavam em situação regular indicaram irregularidades. Apesar de quase a totalidade dos profissionais passar por essa situação, a gente naturaliza isso”, alertou.
Segundo o estudo, as distorções são ainda mais graves entre as mulheres, que respondem por 62,6% dos profissionais formados no país e, muitas vezes, são as preferidas do contratante sob a alegação de “docilidade”. Nas entrevistas realizadas, indica a pesquisadora, verificou-se muitos casos de assédio, dificuldades para retorno ao trabalho pós-maternidade e na própria segregação do trabalho feminino entre as atividades realizadas. As mulheres também são alijadas da autoria de seu trabalho, tendo nome abreviado ou suprimido de ações e projetos e ignorado, inclusive, em premiações. Realidade precarizada que vai do canteiro de obra às salas de aula. “Se somos a maioria é preciso que nos ouçam. E precisamos dizer isso e nos unir”. Esse quadro de precarização, prevê ela, tem uma agudização com a pandemia. “A gente precisa falar disso. As pessoas estão adoecendo. A gente está se sentindo mal. Está muito triste viver de arquitetura”, desabafa.
Os dados foram apresentados durante live do Fórum Saergs no Mundo do Trabalho, encontro que segue ao longo de outubro e novembro com debates semanais envolvendo a profissão. Realizado pelo Sindicatos dos Arquitetos no Estado do RS (Saergs) e com patrocínio do CAU/RS, o evento virtual ainda tem apoio da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), através de seu Departamento no RS (IAB-RS), da Fenea e da CUT.
Segundo Aline Santiago, é o momento de os arquitetos e urbanistas unirem-se por condições mais justas de trabalho deixando de lado o status de “estrela” resguardado a uma parcela ínfima dos profissionais em atuação. Segundo ela, a decisão de estudar o assunto veio ao constatar que pouco se falava sobre a precarização de mercado, talvez porque o debate possa transmitir uma sensação de insucesso aos profissionais. “A precarização é global. O arquiteto se insere nessa crise estrutural”, completou. Na época da elaboração dos questionários, conta ela, um material que auxiliou muito a formular as perguntas foi o Manual do Jovem Arquiteto, uma publicação produzida pelo próprio Saergs em parceria com o Diretório Acadêmico da UFRGS.
Outra iniciativa que vem sendo organizada para diagnosticar os entraves ao trabalho decente no setor vem sendo desenvolvida em conjunto por professores da Universidade Federal do RS (Ufrgs), os arquitetos e urbanistas Bruno Melo, Geisa Zanini Rorato e Eugenia Aumond Kuhn. A pesquisa, que deve começar a fase de questionários em novembro, pretende traçar um raio x das dificuldades vividas no dia a dia, envolvendo danos relativos à saúde e preconceito de gênero. Os resultados, informou Melo, deverão ser apresentados ao movimento sindical nacional para inspirar uma reflexão sobre a profissão
Durante sua participação no debate, Melo informou que o trabalhador precisa se enxergar como tal e recorrer aos sindicatos pela proteção de seus direitos. “Eu me aproximei do sindicato quando me dei conta que o fracasso que eu via não era pessoal, era coletivo”. Cansado de ver colegas em jornadas estendidas noite adentro sem nenhuma compensação ou seduzidos por uma participação societária ínfima com fim apenas de livrar o empresário majoritário de direitos trabalhistas, Bruno Melo uniu-se ao time do Saergs na luta contra a pejotização, ao trabalho por demanda e sem contrato formal de trabalho. “Tem muita gente contratando arquiteto com cargo de desenhista, muitos que excluem funcionários da autoria de projetos ou que atuam como freelancer. Eu percebi que eu não era o azarado, que estava inserido em um contexto de precarização, o que chamamos hoje de uberização dos contratos de trabalho”. Foi então que o jovem Bruno Melo resolveu seguir os ensinamentos do veterano Newton Burmeinster. “Ele me disse. Sopa não se come com garfo. Sopa se come com colher”, indicando o caminho da luta sindical.
Preocupado com os rumos da política sindical nacional, o professor alertou que o desestímulo aos sindicatos deve ser visto como ferramenta de desunião e desmobilização dos trabalhadores. “O cara que faz bico não se vê parte da categoria, não tem ideia de coletivo. Valorizar a profissão é valorizar o profissional”, clamou.
Mediador do debate, o presidente do Saergs, Evandro Babu Medeiros, questionou sobre o que leva colegas de universidade a, em poucos anos, colocarem-se em posição de explorador e explorado no mercado de trabalho. Encaminhando perguntas aos debatedores, o arquiteto interagiu com líderes sindicais de diferentes regiões do Brasil e fez provocações acerca de assimetrias entre empregados e instituições. Medeiros explicou que corrigir esse cenário, ao contrário do que muitos pensam, não é tarefa do CAU, mas dos sindicatos. “A questão ligada a direito trabalhista é papel dos sindicatos. A solução para essas dificuldades vem da união, da filiação dos profissionais aos sindicatos e participação para que se tenha instrumento de defesa”.
O Fórum Saergs no Mundo do Trabalho segue na próxima terça-feira (13/10) às 19h com live “Novas Morfologias do Trabalho na Arquitetura e no Urbanismo”. A participação é gratuita e a transmissão ocorre pelo Canal do YouTube e Facebook do Saergs.
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