O artigo 6º. da Constituição federal, que trata dos direitos sociais do povo brasileiro, garante o direito à moradia como um dos direitos fundamentais, juntamente com o direito à educação, saúde, assistência social, etc. O direito à moradia não constava do texto original de 1988, mas foi incluído no ano de 2000, através de uma emenda constitucional e, com isso, um tema social importante saiu das prateleiras da economia da construção e entrou na disputa do campo social.
De lá para cá, o Brasil continua se urbanizando e o movimento social da moradia acelerou as suas lutas e as demandas e vem tendo conquistas importantes no campo da habitação social ao ponto de ver aprovada uma proposta de projeto-de-lei de iniciativa popular de décadas atrás que instituiu o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, onde somente em 2008 e 2009 teve mais de 1 bilhão de reais. Outra conquista, foi a criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades que propiciou uma interlocução com a sociedade muito forte, trazendo o tema da habitação para o centro da discussão em 2003.
Essas conquistas vieram num raro momento brasileiro, de crescimento econômico e de priorização da aplicação de recursos públicos em infraestrutura nacional e a habitação vinha surgindo como uma das áreas prioritárias na injeção desses recursos de enorme volume e de grande quantidade. Nasceu o PAC do governo federal e com ele o setor habitacional, que há décadas lutava para ser priorizado numa ação de governo, despontou com inúmeros projetos, com recursos do orçamento federal e dos Estados e municípios, com a adesão do FGTS e de outros fundos, com o FDS. O Minha Casa Minha Vida, com 2 milhões de casas, veio coroar esse processo.
Mas há um outro país desconhecido, da informalidade, das pequenas obras de reforma, ampliação e até de construções nas mais diversas cidades do país, principalmente nas áreas mais periféricas, que não aparece nas estatísticas conjunturais por conta da imensa diversidade existente. Essa informalidade fez puxar para cima o consumo de determinados componentes da construção civil, como o cimento e o tijolo e possibilitando a abertura de inúmeras empresas comerciais fora dos centros urbanos das cidades brasileiras. Essa é uma realidade visível. Isso tudo ocorreu entre os anos 2000 e 2010.
Essa informalidade carregou um antigo problema: a população constrói sem o auxílio técnico profissional, ou por que ele não está disponível aos seus olhos, próximos de sua casa ou porque seus serviços são caros e inviabilizam a sua contratação. Isso acontece com arquitetos e engenheiros que com seus escritórios mais centrais e com preços de serviços profissionais cobrados em valores para a classe média, inibem o acesso de pessoas de menor renda.
A saída sempre foi construir de qualquer jeito, ajudado por um amigo construtor e elaborar uma planta arquitetônica que lhe sirva naquele momento. Levantamentos feitos pelas entidades profissionais de diversos estados demonstram que essas casas construídas sem assistência de um profissional têm, quase todas, o mesmo vício: são mais caras do que se tivessem sido construídas com a assistência de um profissional, há mais desperdícios e ainda mais, o conforto térmico, tão necessário numa construção habitacional não é tratado tecnicamente. Dormitórios construídos com janelas orientadas para o lado poente, que o sol da tarde castiga e é ruim para a saúde, é um desses problemas encontrados.
A outra falsa saída é fugir do controle urbano da Prefeitura, pois, na falta de um profissional arquiteto ou engenheiro para se responsabilizar pela obra, essa é considerada clandestina e ilegal e, portanto, passível de multa, embargo e até demolição, como determina os códigos de obras das cidades brasileiras. Na ilegalidade, a construção não pode ser registrada em cartório e mais, não pode ser financiada numa eventual venda, pois a falta de habite-se, um documento essencial exigido nas transações imobiliárias, ela simplesmente não pode existir.
Esse cenário não é novo no nosso país, mas achávamos que ele seria resolvido em 2008 quando o projeto-de-lei de autoria do Deputado federal Arquiteto Zezéu Ribeiro- PT/BA (que teve como início outro projeto do ex-deputado arquiteto Clóvis Ilgenfritz-PT/RS, que dispunha sobre a criação de um serviço de assistência técnica para a habitação social público, ou seja, é como um SUS para a arquitetura social) foi sancionado e veio a famosa Lei da ATHIS. O cidadão de renda até 3 salários-mínimos passou a ter direitos, gratuitamente, aos serviços de profissionais da arquitetura e da engenharia, que devem ser remunerados pelo Estado e ter seus sonhos de moradia, encaminhados. Esse PL foi aprovado e sancionado pelo Presidente Lula e virou a Lei federal n. 11.888 de 24 de dezembro de 2008 e entrou em vigor dia 24 de junho de 2009 seis meses depois como dispunha o texto legal.
A prática de assistir tecnicamente a população com menor renda já é consagrada no direito, com a defensoria pública; na assistência social, na saúde, na educação e na segurança pública e com a aprovação desse projeto, a moradia passou a fazer parte desse grupo de possibilidades para acesso do povo mais pobre.
Com a sanção da Lei 11.888/08, aquilo que era sonho virou realidade e direito legal. Com ele, mais de 10 milhões de famílias teriam direito ao projeto, à obra nova ou de reforma e ampliação e aos serviços sociais e jurídicos essenciais, seja para a construção ou para a regularização fundiária.
Mas, infelizmente, isso não está acontecendo. O Brasil é um dos poucos países do mundo que oferta esse serviço ao povo, conforme determina a Constituição federal mas que, infelizmente, nunca se transformou numa política pública, uma política de Estado. E já se vão 12 anos de existência da Lei 11.888/2008, mas a população que dela necessita ainda não sentiu o gostinho de usar a lei em seu benefício.
Somente em 2009 que o Ministério das Cidades antigo, emitiu um Edital de ATHIS. De lá para cá, nunca mais houve nenhum recurso explícito, do governo federal, disponível para o cumprimento desse preceito legal de direitos da moradia para essa faixa de renda de 0 a 3 salários-mínimos.
O brasileiro de menor renda ainda não tem esse serviço à sua disposição apesar de haver lei que lhe dá esse direito. Não há estrutura pública nacional, nem estadual e muito menos municipal. O que existem são ações isoladas de algumas cidades, de algumas entidades sociais, mas nada de uma política estruturante. Somente ações. E pequenas e para poucos.
Levantamentos feitos pelo CAU BR e com a participação de diversas entidades demonstram uma pequena quantidade de cidades (nem 1% das cidades brasileiras) que dispõem de alguma estrutura para a ATHIS local. Nenhum governo estadual adotou a ATHIS. O governo federal, extinguiu o Ministério das Cidades e colocou o setor de habitação no Ministério de Desenvolvimento com a Secretaria Nacional de Habitação. No Programa Minha Casa Minha Vida para entidades, havia um pequeno recurso para ATHIS mas esse Programa está sendo extinto e esvaziado e o movimento social está sem apoio e sem políticas.
Nesse meio tempo o CAU BR aprovou uma Resolução que aplica um percentual de sua receita em Editais nacional e estadual em ATHIS mas esse recurso não chega na ponta para os mais pobres. Se perde em projetos, (importantes em sua maioria) mas não cabe ao CAU produzir política pública de ATHIS e sim ao governo federal O CAU BR e os CAUs usam recursos públicos de sua arrecadação para ATHIS apenas no ambiente fora do ambiente da ponta, da necessidade do mais pobre. Aplica milhares de reais em eventos, pesquisas, seminários mas isso não resolve o drama da falta de habitação.
Sendo assim, há uma situação que considero “calamitosa”. Uma lei que não se cumpre; uma população que tem seus direitos não realizados; uma categoria de profissionais arquitetos e urbanistas e engenheiros sem trabalho de interesse público. Prefeituras e governos estaduais sem agir e tudo isso sendo assistido pelo Ministério Público sem que se faça nenhuma ação de cumprimento da lei em sua prática municipal, especialmente.
Quem perde, mais uma vez, é o povo mais pobre, que vê seus direitos voando pela janela e as cidades continuam assistindo obras e mais obras sendo feitas sem profissionais, do jeito que dá. Pois sempre foi assim e sem luta nossa, continuará a ser.
Ângelo Marcos Arruda
Vice Presidente do IAB-SC e Ex-Presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).
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