Ao Presidente da República Sr. Luiz Inácio Lula da Silva
Ao Ministro das Cidades Sr. Jader Barbalho Filho

Nós, estudiosos(as), pesquisadores(as), professores(as) universitários(as), profissionais, gestores públicos e lideranças sociais de todo Brasil, dedicados ao tema da habitação e do urbanismo, abaixo assinados, vimos, muito respeitosamente, fazer sugestões à nova versão do Programa Minha Casa Minha Vida anunciado por Vossas Excelências como parte dos programas de governo a serem implementados a partir deste ano de 2023.

Antes de focar no Programa, que é a razão deste documento, queremos mencionar a importância de todas as atividades do Ministério das Cidades, previstas na estruturação das Secretarias de Saneamento Ambiental, de Mobilidade e Trânsito, de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano e
na inovadora Secretaria dos Territórios Periféricos, e enfatizar a necessária visão sistêmica de espaço urbano que deve nortear toda a atividade, incluindo a Secretaria de Habitação.

O Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) teve méritos indiscutíveis para as mais de 5 milhões de famílias beneficiadas com moradia entre 2009 e 2016. Nunca nenhum programa de moradia do governo federal alcançou tal dimensão em período tão curto e, o que foi inédito, garantiu ainda expressivos subsídios de forma a permitir o acesso à moradia à população de mais baixas rendas. Pela primeira vez na história do país um programa habitacional deu prioridade para a chamada Faixa 1 composta pela população com rendimentos de até R$ 1.800. Entretanto, quando vivemos a possibilidade alvissareira de um novo governo retomar políticas sociais tão importantes, como é o caso da política habitacional, é preciso atentar para a necessidade de aprimorar o programa de forma a evitar a repetição de equívocos.

O maior problema do PMCMV 1 (2009) e o PMCMV 2 (2011) foi, sem dúvida, a localização fora das áreas consolidadas das cidades de parte expressiva dos empreendimentos, ou seja, nas periferias distantes, desprovidas de equipamentos públicos, distantes do comércio, dos empregos, do transporte adequado, em áreas que, não raramente, acabaram sob o domínio do crime organizado ou das milícias constituindo bolsões de pobreza situados nas periferias distantes. Não há dúvidas de que o PMCMV garantiu o direito à moradia para pessoas de baixa renda, mas, ao não conseguir equacionar o direito à cidade, foram muitas as consequências sociais e econômicas, já que alimentou a especulação fundiária nas terras vazias e a urbanização dispersa, como revelaram vários estudos.

A principal causa desse problema está na modalidade conhecida por “empreitada global”, que transfere a uma única empresa privada, responsável pelo empreendimento, a definição do terreno e a localização das moradias, os projetos de urbanismo, arquitetura e engenharia e a execução da
obra. Dessa forma, preocupações com a melhor localização do empreendimento e qualidade de projeto e obra ficam totalmente subordinadas a prioridades contrárias ao interesse público. Essa foi a forma de aplicação de 98% do orçamento do PMCMV, visto que, por não ter sido equacionado o manejo fundiário a cargo dos municípios, acabou por reproduzir o padrão de urbanização que lança as camadas populares para as franjas urbanas. Não foram poucos os casos de municípios que ampliaram o perímetro urbano legal para incluir empreendimentos nas periferias extremas. A ausência de instrumentos que pudessem dar aos Estados e municípios maior protagonismo, não estimulou avanços relacionados à função social da propriedade da terra prevista no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores.

Outro problema decorreu do grande porte de parte dos empreendimentos e também aos projetos urbanísticos e arquitetônicos, muitas vezes inadequados. Como exemplo, pode-se citar a falta de diversidade arquitetônica das tipologias definidas sob direção das construtoras que levou a problemas de conjuntos com densidade de ocupação inadequadas em relação à morfologia urbana em que se inseriram. O PMCMV não apresentou nenhuma inovação de tipologias baseadas, por exemplo, em casas sobrepostas, possibilidade de comércio nos térreos, ou outras
soluções.

O subprograma PMCMV Entidades, ao contrário, mostrou como o protagonismo dos movimentos populares com assessorias técnico-sociais – de arquitetos(as), engenheiros(as), assistentes sociais, sociólogos(as), acompanhando todo o processo da escolha da terra, da elaboração do projeto, da execução da obra, e da pós ocupação – pode garantir empreendimentos com melhor localização, melhores projetos e melhor qualidade das obras, embora tenha sido responsável por apenas 1,33% das moradias contratadas do orçamento total do PMCMV e 4,1% das moradias contratadas
na Faixa 1.

Sabemos do grande potencial que um programa como o PMCMV tem de gerar emprego e renda e por esse motivo, e devido à inquestionável necessidade de atenção à crise habitacional no Brasil é que fazemos as seguintes sugestões:

EM RELAÇÃO À PRODUÇÃO DE NOVAS MORADIAS
1) Valorizar o protagonismo da relação federativa fortalecendo a participação dos municípios, dos governos estaduais e das cooperativas populares na definição de projetos e terrenos melhor localizados na malha urbana ou edifícios ociosos em áreas centrais urbanas. Estimular governos municipais na aplicação dos instrumentos da Função Social da Propriedade prevista no Estatuto da Cidade de modo a garantir o direito à cidade além do direito à moradia. Exigir que municípios destinem terrenos ao programa, de forma que tenham maior responsabilidade quanto à sua localização. Priorizar a destinação à Habitação de Interesse Social de imóveis da União que tenham vocação para esse uso.

2) Diversificar os produtos habitacionais com a reintrodução de lotes urbanizados, reforma de edifícios existentes, melhorias habitacionais, locação social e exigir projetos de melhor qualidade, mais adequados a cada realidade física e ambiental seguindo caminhos apontados nas propostas no primeiro Governo Lula, bem como na Lei do FNHIS (Lei de Habitação de Interesse Social de 2005), na Lei 10.888/2008 de ATHIS( Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, no PlanHab (Plano Nacional de Habitação de Interesse Social) de 2009.

3) Estabelecer que a etapa de escolha da terra e de elaboração do projeto arquitetônico e urbano, não sejam de responsabilidade da empresa construtora. Dessa forma, sendo possível incentivar concursos públicos de projetos e outras modalidades de licitação, o que poderia abrir para os municípios a possibilidade de inovação na qualidade dos projetos arquitetônicos e urbanos, melhorando a implantação dos conjuntos. E rever especificações de projeto adotadas pelo Ministério das Cidades e CAIXA, buscando melhor qualidade para a moradia e para a cidade.

4) Exigir frequência no Trabalho Técnico Social em empreendimentos, com início antes da entrega da obra, de modo que as famílias atendidas possam construir laços de vizinhança e a corresponsabilização com relação à manutenção. Prever acompanhamento técnico-social no pós-entrega, de modo a garantir a estrutura coletiva de gestão do conjunto habitacional.

5) Fortalecer o MCMV-Entidades, destinando maiores recursos à modalidade, tendo em vista que esta obtêm melhores resultados em termos arquitetônicos e urbanísticos, gera efeitos multiplicadores na economia local, além de gerar vínculos sociais e pertencimento no processo de viabilização.

6) Constituir um subprograma específico para a reabilitação de edifícios ociosos de áreas centrais das nossas cidades. No âmbito do MCMV-Entidades, especialmente em São Paulo, houve inúmeros projetos exitosos, com os municípios em muitos casos oferecendo prédios públicos, desapropriados ou retomados a partir da aplicação dos instrumentos urbanísticos como contrapartida. Dado o número de unidades vazias nos centros das cidades brasileiras, que pode chegar a quase 5 milhões de unidades, essa vertente merece ser estruturada como uma modalidade específica do PMCMV. Com tais propostas, mais plurais, mais racionais do ponto de vista do desenvolvimento urbano, tentas à diversidade das necessidades sociais e urgências ecológicas, podemos alavancar a economia, mas também construir um novo paradigma para a política habitacional, agora coerente com o direito à terra urbanizada, com coerência no uso e ocupação do solo (urbanização compacta), e ainda baixo impacto ambiental, novos padrões de projeto e construção, de consumo de água e energia (energia solar por exemplo). Cabe acrescentar ainda que tão importante como construir novas moradias para a saúde pública e o meio ambiente é a reforma das moradias existentes acompanhadas de processos de urbanização (que incluam o saneamento e a mobilidade sustentável) e regularização, da prevenção e eliminação de riscos (com Soluções Baseadas na Natureza) e equipamentos sociais que ofereçam oportunidades de educação em tempo integral, cultura, esporte, lazer e alimentação para crianças e jovens das periferias urbanas.

Para finalizar, queremos manifestar nosso compromisso com o esforço de reconstrução do Brasil, com o combate à desigualdade e defesa da democracia e soberania nacionais que constituem a tarefa histórica deste governo.

O manifesto do BRCidades é assinado por diversos pesquisadores dedicados à habitação e ao urbanismo e entidades, entre elas a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

> Leia o manifesto completo em https://www.brcidades.org/_files/ugd/9fc67a_56a5fc0bc63e4be6b1439dc8c244a0b1.pdf

Foto: Ubirajara Machado/MDS