Ângelo Arruda

Arquiteto e urbanista, ex-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA). Atual Vice Presidente do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas de Santa Catarina e Coordenador do GT Estudos Urbanos do IAB SC

O Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional uma PEC 108/2019, incluindo na Constituição federal, dois artigos: o 174-A. – que trata da liberdade do exercício de qualquer profissão, exceto aquelas que causem risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social; e o 174-B – que tira do setor público todos os conselhos profissionais.

Na mensagem do ministro Paulo Guedes encaminhada ao presidente da República, este afirma que a proposta “visa consolidar o entendimento de que os conselhos profissionais não integram a estrutura da Administração Pública…”, e que “a medida também afasta, definitivamente, qualquer hipótese de equiparação da organização dos conselhos profissionais às autarquias integrantes da Administração Pública e que a medida avança na compreensão de que devem ser respeitadas a liberdade de exercício profissional e de associação, constitucionalmente assegurada. Por fim ele elenca 4 implicações que ele considera fundamental serem regulamentadas: a) administrativa – os empregados dos conselhos profissionais não são servidores públicos; b) organizacional – os conselhos têm autonomia para autogerir-se e organizar-se, não devendo ser supervisionados por órgão do Poder Executivo; c) orçamentária e financeira – as receitas dos conselhos não constituem receitas da União, e tampouco os orçamentos e por fim; d) de ordem socioeconômica, tendo em vista a interferência sobre a liberdade de organização das profissões e as repercussões em diversos setores de atividades com a criação de entraves ao mercado de trabalho.

De acordo com o IBGE 2018, em torno de 9% da população brasileira tem nível superior (umas 18 milhões de pessoas). Desses 18 milhões de profissionais 14,6 milhões deles estão registrados nos 29 Conselhos Profissionais federais e nos 559 conselhos regionais existentes atualmente, sendo que destes, apenas 8 milhões de profissionais e 1,3 milhão de empresas estão em dia com as suas responsabilidades, gerando uma receita total de 4 bilhões de reais, ou seja, U$S 1 bilhão. Quase a metade dos 14,6 milhões de profissionais registrados, são enfermeiros (1.700.000). técnicos (1.500.000), advogados (1.100.000), engenheiros (1.000.000), corretores (550.000) e médicos (450.000). Esse sistema público funciona assim há quase um século.

Agora o atual governo começa a ter um outro entendimento, puxado pela iniciativa liberal do Ministério da Economia e nesse pacote, quer privatizar todos os atuais 29 Conselhos Profissionais existentes, alguns criados há quase 100 anos e outros recém-criados como o de Arquitetura e Urbanismo. Privatizar significa dizer que os Conselhos devem ser regidos e geridos pelos próprios profissionais que passam a contribuir “voluntariamente” e não “legalmente” como é hoje.

Essa é a primeira das coisas que precisamos aprender com a PEC para usarmos no debate com a sociedade e com o Congresso Nacional. Somos 14,5 milhões de profissionais registrados em todos os 29 Conselhos sendo que desse total de conselhos, alguns deles podem não se enquadrar nos critérios da lei que deve regulamentar a PEC e que seus profissionais não causem risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social. Para continuar existindo como entidade privada os conselhos precisam cumprir essa exigência constitucional.

Ou seja, dos 29 antevejo que uns 10 ou 12 deles podem não cumprir esses critérios de “risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social” como único meio de existirem, conforme a Constituição federal determinará com a aprovação eventual da PEC.

Bem, as profissões que, de cara, cumprem essas exigências são bem claras para mim. Entretanto haverá luta de todos os 29 para demonstrar que todos cumprem essa exigência. Aí vem a minha pergunta: a profissão de arquiteto e urbanista cumpre esses critérios? Se não houver arquiteto haverá “risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”? SIM, essa é a minha resposta, mas pode não ser a do governo federal.

Então vejamos. Antes dos nossos dirigentes saírem dizendo que a PEC é inconstitucional (uma PEC muda a Constituição, portanto ela não é inconstitucional) ou que os conselhos defendem a sociedade (precisamos mostrar dados e números para informar ao governo de suas ações e operações de fiscalização com dados sobre o trabalho leigo), é importante mostrarmos o que fazemos e porquê somos necessários e que se não houver um arquiteto e urbanista na obra, nas cidades, no paisagismo e no patrimônio cultural, especialmente, haverá sim risco à vida e à saúde. Pessoas podem ficar doentes se passarem a habitar em edifícios mal projetados, com orientação solar equivocada ou, correrem risco de morte, com o uso de materiais inadequados. Cidades sem planejamento urbano, que não tenham arquitetos e urbanistas controlando suas ações diárias e projetos, podem sofrer danos graves à segurança e à ordem social, nos campos da mobilidade urbana, habitação, planejamento urbano, enfim.

Ou seja, nossos argumentos precisam ser de demonstrar o que fazemos e porque somos importantes e até imprescindíveis.
Nessa hora precisamos nos socorrer com nossos mestres que fizeram coisas importantes para as cidades, para as construções, para a inovação e especialmente para o meio ambiente. Relembremos Oscar Niemeyer, Lelé, Lúcio Costa, Eduardo Kneese de Melo, Borsói, Lina e uma infinidade. É nessa hora que precisamos olhar para nós mesmos e dizermos ao Congresso, à sociedade e à imprensa e aos órgãos de controle, o que temos feito em prol do desenvolvimento nacional, das cidades, da habitação e do meio ambiente. Somos importantes, temos história, fazemos parte da condição cultural das cidades e do país e temos de negar essa PEC com bons argumentos.

Para isso, precisamos de articulação com os demais Conselhos que nunca deixarão de ser importantes para à vida, à saúde, à segurança e à ordem social. Temos de fazer as alianças, compartilhar os dados que temos, as ações que fazemos que nos caracterizam como importantes para as pessoas. Agora, se ficarmos com a conversa de que temos lei que nos criou, temos objetivos e definições legais, que a sociedade precisa de um Conselho, vamos perder esse debate.

Na atual conjuntura brasileira temos de mostrar a nossa importância para o governo, para a sociedade, especialmente os mais pobres com a ATHIS, para os políticos que gostam de inaugurar obras seguras e bem projetadas. Vamos nos defender nas redes sociais com argumentos simples e de fácil compreensão, não com linguagem da burocracia, antes que os que desejam a aprovação da PEC e nos coloque em situação de risco, o façam.
Mas para tanto, precisamos mudar. O CAU BR e todos os CAUs estaduais precisam se transformar. Se adequar à realidade do país.

Não dá para escutar o Relatório de Auditoria do TCU, com o parecer do ministro Weder de Oliveira no Processo TC 036.608/2016-5 que diz que os conselhos servem e muito para proteger a sociedade do exercício irregular e ilegal em benefício do povo, com o cuidado de fazer valer a máxima da técnica e da qualidade e que os conselhos são apropriados para ajudar e apoiar o Estado na execução de políticas públicas, com a sua capilaridade e com o seu caráter divulgador e cita o Programa Mais Médicos e Minha Casa Minha Vida mas que as auditorias apontam atuação descontrolada, entupindo a Justiça federal com mais de 350 mil ações de execução fiscal congestionando a justiça; denúncias, seja de conselheiros ou ex-conselheiros ou profissionais, que dão conta de irregularidades ou ausência de normas administrativos, bem assim: valores excessivos e quantidade excessiva de diárias (tendo caso de mais de 250 por ano), pagamento excessivo de verbas indenizatórias, burla da função honorífica do cargo com remuneração disfarçada, concurso e licitações irregulares, contratação de amigos e parentes indireta, repasse de recursos para os regionais com finalidades eleitorais, com interesses políticos, falta de transparência, etc. Para finalizar, ele diz, que o Sistema dos Conselhos Profissionais não funciona adequadamente no que tange ao seu compromisso constitucional e legal.

Para o TCU, os Conselhos “não evoluíram” e se tornaram núcleos de defesa da classe ao invés de serem mecanismos de defesa da sociedade. No Relatório o TCU diz que os conselhos fazem tudo menos fiscalizar as profissões e que somente 9% dos 4 bilhões são de fato usados em fiscalização. O resto vai para pagamento de festas, escritório de advogados, altos salários e diárias em excesso, realizações político-eleitoreiros, compra de imóveis e contratação de parentes de conselheiros e por aí vai” A quantidade de fiscais é insuficiente por conta da quantidade excessiva de funcionários.
Temos de rebater esses dados pois esse discurso pode ser bom para os que não querem que exista Conselhos profissionais e que defendem a desregulamentação profissional. Sem defender mercado ou criar uma caixinha de trabalho para nós, precisamos mostrar para o país que o arquiteto e urbanista é profissão necessária para o desenvolvimento nacional, que temos um Conselho que está engajado com a evolução da nossa profissão, com a qualidade do ensino superior e com a segurança da sociedade e que precisamos nos organizar para essa tarefa. Se não tivemos condições de rebater esses dados, perderemos essa batalha.

Talvez estejamos, pela primeira vez, depois que nos juntamos para criar o CAU entre 1957 e 2010, precisando nos unir e juntarmos nossas forças. Caso contrário, seremos esmagados pelo rolo compressor do liberalismo econômico e da privatização da nossa entidade pública.

*Arquiteto e urbanista, ex-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA). Atual Vice Presidente do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas de Santa Catarina e Coordenador do GT Estudos Urbanos do IAB SC.

Foto: Carolina Jardine