O último dia do 21° Congresso Brasileiro de Arquitetos em Porto Alegre, sábado (12), trouxe para o debate a dura realidade de que quase a totalidade das cidades brasileiras são penalizadas com a ausência de políticas públicas, uma carência histórica que leva à segregação territorial e social. O tema reuniu na Sessão Livre – Cidades e Direitos Humanos, no Multipalco Eva Sopher, três mulheres que estão na linha de frente deste cenário, pesquisando, atuando e combatendo a desigualdade social urbana em todos os seus níveis. A Sessão Livre teve mediação de Eleonora Mascia, vice-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Tainá de Paula, mestre em Urbanismo pela UFRJ e coordenadora do projeto Brasil Cidades e Gabriela de Matos, arquiteta e urbanista e idealizadora do projeto Arquitetas Negras.

O debate sobre a assimetria de gênero pautou a Sessão Livre, considerando que os aspectos da segregação racial precisam ser identificados e enfrentados no planejamento e gestão das cidades. “A cidade é vivida de forma diferente pelos grupos sociais. Uma mulher branca em São Paulo tem experiências diferentes de uma mulher negra em São Paulo. Não podemos falar de gênero sem incluir também a questão da interseccionalidade de recorte de raça e gênero, por exemplo”, afirmou Paula Santoro. Segundo ela, a abordagem interseccional é fundamental para dar visibilidade ao cenário que está posto, permitindo fazer uma nova leitura urbana das cidades e dando luz e voz a grupos que sofrem diversas formas de opressão. Para Paula, é preciso rever a literatura usada até agora para falar de gênero e raça. “A discussão sobre segregação sempre foi um olhar sobre classes, mas é preciso falar que a segregação inviabilizou também milhares de mulheres, que hoje estão lá, dentro de suas comunidades, invisíveis.”

Tainá de Paula abriu sua palestra lembrando que os projetos econômicos dos últimos anos – com um modelo excludente e concentrador – não deram conta de alterar a realidade da exclusão social no Brasil. “Apesar de o país ter o 18° maior PIB mundial, ocupa a 10° posição no mundo quando o assunto é desigualdade social territorial. Somos um dos países com maiores índices de desigualdade social e econômica do mundo”, destacou a arquiteta e urbanista do Rio de Janeiro. Segundo ela, as transformações do capitalismo impactam diretamente no projeto de reduzir as desigualdades que imperam nas comunidades brasileiras, mas acredita que dentro do sistema capitalista dificilmente essa balança será equacionada. “O que vemos é uma hiperconcentração de riquezas, apesar de não faltar recursos no nosso país”, destacou.

A arquiteta e urbanista considera que somente um novo modelo econômico inclusivo trará reflexos positivos para as cidades como um todo, especialmente para os negros periféricos e marginalizados. Tainá pontua que é preciso rever urgentemente a agenda antirracista, onde cadeias produtivas fazem uso de uma base escravagista para seus ganhos econômicos. “Um prédio no Brasil demora, em média, dois anos para ser construído, e o pedreiro recebe um salário mínimo por mês. O mesmo prédio, no Chile, leva 9 meses para ser concluído, e o pedreiro ganha US$ 5 mil por mês. Então, tem algo muito errado na cadeia produtiva e na modelagem econômica brasileira, essencialmente escravagista e cruel”, destacou.

A falta de representatividade negra na Arquitetura e Urbanismo foi o que levou a mineira Gabriela de Matos a criar a plataforma Arquitetas Negras, em 2018, com o objetivo de mapear e dar visibilidade a essas profissionais. Hoje, já são 370 arquitetas mapeadas em todo o país e o engajamento só cresce. Segundo ela, a iniciativa busca traçar ações para reduzir a discriminação racial e de gênero na arquitetura. “É uma experiência de representatividade em um mundo onde a raça define a vida e a morte”, pontuou com a frase que costuma abrir suas palestras. “O racismo pauta tudo, e o sistema só conseguirá uma análise profunda quando houver foco permanente sobre essas desigualdades”, afirmou, destacando que a análise sobre a crise urbana brasileira não pode ser feita apenas considerando as diferenças de classes.

“O congresso foi extremamente feliz em trazer para o debate a pauta sob o ponto de vista dos direitos humanos, de inclusão social e de identidade de gênero de uma forma mais ampla”, destacou Eleonora Mascia, vice-presidente da FNA. Para ela, é preciso conhecer a forma como a cidade acolhe e atua no trabalho com homens e mulheres e sua diversidade social e sexual. “A arquitetura e o urbanismo muitas vezes reproduzem modelos de uma base concentradora de renda, escravagista e opressora. Por isso, temos a necessidade de atuar para mudar esse modelo, propondo uma cidade com uma arquitetura mais inclusiva e justa de fato, verdadeira e explícita”, afirmou. Eleonora destacou ainda que os próprios estudantes de Arquitetura e Urbanismo trouxeram para o congresso a realidade que esses temas não são tratados em sala de aula. “Há dificuldades na abordagem desses temas, mas é urgente reconhecer no ensino e na formação a pauta que está posta”, enfatizou.

 

Fotos: Luciana Radicione