No dia 10 de fevereiro, em São Paulo, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou 114 milímetros de precipitação – o segundo maior volume de chuva para o mês em 77 anos. Os resultados foram muitos transtornos para a população, desabamentos, serviços públicos cancelados, mobilidade e transporte público afetados. A cidade parou. Desde o final do ano passado, as notícias de cidades em situação de calamidade por conta das chuvas ocupam os noticiários: Salvador, no final de novembro de 2019; Belo Horizonte e cidades do leste mineiro desde janeiro. O que se vê em São Paulo não é diferente do que ocorre nas demais cidades, com mais ou menos recursos financeiros disponíveis ou investidos. “As chuvas de verão têm deixado expostos os equívocos dos modelos de urbanização adotados pelas cidades brasileiras de todos os portes”, afirma o secretário de Políticas Públicas da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), arquiteto e urbanista Patryck Carvalho.

“Nós tratamos mal os rios e córregos, desrespeitando as dinâmicas naturais das águas. As planícies de inundação natural estão ocupadas por diversos usos inadequados, com altos índices de impermeabilização do solo. Os fundos de vales são, em regra, utilizados para construção de avenidas, com tamponamento dos cursos d’água. Ao invés de despoluir, reflorestar e deixar livres as margens, o que vemos é lançamento de dejetos (de todos os tipos) e impermeabilização do solo. O modelo de circulação consagrado é o do transporte privado por automóveis que exige milhares de quilômetros de vias pavimentadas”, pontua Carvalho.

Cerca de 674 mil pessoas vivem em áreas consideradas de risco na cidade de São Paulo. No Brasil, estima-se cerca de 8,2 milhões de pessoas nessa situação, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o diretor da FNA, a redução das áreas verdes e permeáveis tem sido uma tônica em todas as cidades. Em São Paulo, os Parques Lineares, que deveriam ser implantados ao longo das margens dos córregos, são um comando do Plano Diretor não obedecido pelos que elaboram o orçamento da cidade. O arquiteto e urbanista destaca que uma parte considerável das cidades é produzida pelos próprios trabalhadores. “Isso ocorre porque o planejamento e boa parte dos investimentos públicos destinam-se às áreas mais endinheiradas das cidades. Para as demais áreas prevalecem o planejamento e o investimento de remediação”, afirma o diretor da FNA.

Carvalho lembra que é nos morros e beiras de córrego que grande parte da população consegue lugar para morar, uma vez que a habitação na cidade formal, produzida pelo mercado imobiliário, é cara e não pode ser adquirida pela maioria. Além disso, tanto os morros quanto as beiras de córrego apresentam restrições de ocupação nas legislações ambientais e urbanísticas, por cumprirem funções de regulação ambiental, por exemplo, para retenção e circulação das águas. “São justamente essas restrições que retiram esses territórios da utilização e comercialização pelo mercado imobiliário formal, pelo menos por um tempo”, destaca o arquiteto e urbanista.

Em meio à realidade brasileira, está a Constituição de 1988, que trata a Habitação como um direito social – e é hoje uma das mercadorias mais valorizadas nas cidades. No entanto, políticas habitacionais em escala, com altos subsídios, de forma a atender as famílias de mais baixa renda, são intermitentes e dependem do governante de plantão (o MCMV foi criado em 2009 e patina desde 2016). “Então, auto construir uma casa em áreas de risco não é escolha, mas a única opção de morar para muitas famílias. Elas têm um alto custo social para viver nesses lugares, seja cotidianamente, pelas carências e ausências, seja nos momentos de tragédias que afetam de modo mais contundente essas regiões”, pontua.

 

Foto: Fernanda Cruz / Agência Brasil