Se as empresas públicas que operam nos sistemas de saneamento básico no Brasil vêm tendo dificuldade em levar esse direito às populações mais carentes e isoladas, por que acredita-se que as privadas terão mais facilidade para isso? O questionamento foi feito pelo professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e engenheiro civil Ricardo Moretti nos primeiros minutos da live #6 da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), que ocorreu na segunda-feira (6/7). Segundo ele, companhias geridas com foco único e exclusivo no lucro tenderão a concentrar sua ação em áreas de maior rentabilidade: aquelas onde o fornecimento é mais fácil e barato e onde o risco de inadimplência é menor. Com isso, para Moretti, o novo Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado no Senado no final de junho, trará ao Brasil uma maior elitização do serviço com o agravamento da divisão de classes e obscurecimento desse direito básico e universal. Esse foi o tema central da transmissão, que contou, também, com a participação da professora da Universidade de Brasília (UnB) e arquiteta e urbanista Liza Andrade.

De forma incisiva, Moretti falou sobre a relevância de manter o monopólio natural sobre áreas essenciais para a soberania de um país. O professor estabeleceu um paralelo com o abastecimento de uma residência: “se tenho um fogão que é abastecido com gás de rua e ele falta, eu posso voltar ao botijão. Se a internet tem problemas, eu posso mudar de provedor. Mas com o saneamento, não temos um livre mercado em que entra quem tem mais eficiência. Se a companhia for ruim, a pessoa tem que mudar de casa, de cidade. É um setor em que colocar a iniciativa privada, pautada pelos interesses financeiros, é perigoso”, afirmou. Para Moretti, historicamente, o sistema de saneamento no Brasil, que deveria ser visto como um direito de todos, foi desenvolvido como um negócio. “Quem está na rua tem que ter acesso ao saneamento, porque se ele não tiver, você, que tem condições de pagar, vai estar em risco. A pandemia deixou claro que ou construímos uma condição de saneamento boa para todos, ou todos estão em risco”, reforçou.

Outro problema apontado por Liza foi o fato de que as companhias não conseguem entrar nas áreas que não são passíveis de regularização, o que acaba segregando ainda mais o acesso. “Essa complexidade que envolve o saneamento dificulta a prestação de serviços, não só no setor público como no privado”, ressaltou. Para tentar resolver esse dilema, Liza sugeriu maior integração entre o saneamento e outras políticas públicas, como a habitação, o meio ambiente e a saúde. “Tínhamos que aproximar as áreas. Saneamento é uma questão que tende a ser tratada com desprezo, como uma coisa suja, e não como algo limpo, que purifica as águas”, pontuou.

Especificamente sobre o Marco Legal, os professores entraram no consenso de que o texto da lei não foi discutido com movimentos sociais e a população. Moretti explicou que a privatização, antes da nova legislação, já podia ser feita. Porém, agora, os municípios, quando terminarem os contratos com as empresas estatais, precisarão abrir licitação obrigatoriamente e oferecer o contrato para a iniciativa privada. Assim, tiram a possibilidade de a empresa estatal continuar agindo. “Do ponto de vista técnico, resolver a questão do esgotamento sanitário é muito simples. Se reservar na cidade um espaço de dois metros quadrados por pessoa e construir um lago aeróbico, se trata todo o esgoto”, sentenciou o engenheiro.

O secretário de Políticas Públicas e Relações Institucionais da FNA e arquiteto e urbanista Patryck Carvalho, que mediou a live, chamou a atenção para a relevância do debate sobre saneamento nas eleições municipais, que ocorrerão no final deste ano. “As pessoas têm que se perguntar: o que seria uma boa pauta para os prefeitos para o saneamento básico?”, afirmou. Patryck pontuou que o Brasil atua no caminho da privatização desses recursos e vai na contramão de outros países que já estão re-estatizando os sistemas de saneamento, a exemplo de cidades na Alemanha e de Paris, na França.

Ao final da transmissão, Liza lembrou do conceito de alfabetização urbana, cunhado pela arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, e reforçou que é preciso educar a sociedade para as questões referentes aos recursos naturais. “Temos que envolver a sociedade no entendimento da água. As pessoas não têm noção da tragédia que está por vir e o que podemos passar”, afirmou. Moretti complementou dizendo que não é contra as companhias privadas, mas é necessário muita atenção e cautela sobre o tema. “Não é a cidade para quem pode, para quem é bom, para quem pode pagar. Temos que garantir que a cidade seja boa para quem nela vai morar, se não, não tem cidade boa para praticamente ninguém”, pontuou.

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Links importantes sugeridos pelos professores:

https://ondasbrasil.org/a-tarifa-social-e-o-direito-humano-a-agua-e-ao-saneamento/

https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ricardo-moretti-e-edson-silva-covid-19-escancara-urgencia-de-universalizar-acesso-aos-servicos-de-saneamento.html

https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2020/03/Carta-%C3%A0-Sociedade-Brasileira-completa.pdf

https://ondasbrasil.org/a-universalizacao-do-saneamento-e-suas-relacoes-com-a-pobreza-a-desigualdade-e-a-precariedade-urbana-no-brasil/

Vídeo: Entre rios: a urbanização de São Paulo. Direção: Caio Silva Ferraz: https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc

Doutorado Liza Andrade