Por Abel Teixeira Escovedo

Hoje é 31 de Março. Há 57 anos começava a mobilização da Ditadura de 1964 que se seguiu por longos 21 anos. Esse é, ao menos no meu olhar de quem não estava vivo para ver, o período mais autoritário visto e vivido por todas e todos com que se encontra por aí. Não há como nem porque esconder que tantos anos depois, novamente sob governo liderado por um militar, e sobre uma pressão sanitária e social sentida em todos os cantos do país se reúnem hoje sob chamado do presidente e de diversos representantes da elite militar e nacional comemorações da data do golpe de 1964.

Já se foi o tempo que o último golpe político no Brasil foi o de Março de 1964. E pelo menos desde Agosto de 2016 a movimentação da estrutura social e política voltou a se curvar para um autoritarismo que poucos poderiam sequer imaginar a qual custo e com qual cara viria.

Em tempos de 3 mil mortes por dia em nosso país, vítimas da má administração da pandemia de SARS-COV-2, parecem até longínquas as perdas das instituições sindicais, dos conselhos participativos, da indústria da construção civil nacional. Mas esse é um canal de comunicação profissional e nos são muito caros os meandros do nosso trabalho e da organização de nossos profissionais.

Aproveitemos para reorganizar nossa memória e resistir a escalada de perdas, destruições e negações que nos coloca a cada dia mais frágeis a esse autoritarismo que está representado pelas performances e manifestações que se sintam a comemorar a Ditadura de 1964.

A participação da nossa categoria, da nossa classe, dos nossos estudantes, do nosso sindicato, são registros vivos como mostrou nossa federação mais cedo. É sobre a memória de tantas colegas e colegas que nos debruçamos um pouco mais hoje no esforço de nos lembrar. Lembrar de antigas lutas e sonhos que até hoje nos enfrentam, coreografadas nas ruas, cada vez mais de armas nas mãos.

Como não seria possível em um único dia ou texto lembrar de tudo, vemos aqui fragmentos da nossa memória para hoje, a entrevista com o historiador Paulo Parucker. Ilustrada pela foto de capa, de Marcos Santilli, por fragmentos de um discurso proferido na FAU/UnB presentes no livro A rebelião dos Estudantes, de Antônio Padua Gurgel, e por um arquivo de vigilância mantido pela ditadura e acessível no Arquivo Nacional. E que de hoje até 1o de Maio possamos exercitar nossa memória em rumos a uma comemoração que deve de fato acontecer, o dia do trabalhador.

Entrevista na íntegra realizada com o Historiador Paulo Parucker no dia 29/3/2021.

Desenho de Paulo Parucker. (Flávio Roberto Castro Nóbrega, 2021)

 

1.Qual a sua idade, de onde você vem, como foi seu primeiro contato com a ditadura?

Antes de mais nada, gostaria de agradecer o convite para essa oportuna conversa e celebrar a iniciativa do sindicato, especialmente na conjuntura em que vivemos. Quanto a mim, os primeiros contatos com a ditadura foram, possivelmente, as vibrações de um tempo tumultuado em minha fase intrauterina: quando nasci, o golpe que derrubou o presidente Jango tinha ocorrido não mais que 5 semanas antes. Assim, nasci e passei toda a infância e adolescência sob o regime militar. Mas, apesar de toda a propaganda ufanista do governo, das aulas de Educação Moral e Cívica, de toda a censura e tal, lá pelas tantas a gente vai crescendo e começa a perceber nuances, a buscar um olhar crítico. (Meus velhos eram o que se podia chamar de liberais, leitores d’O Pasquim, mas sem grandes arroubos oposicionistas). Aos 15, 16 anos, fiz minhas primeiras leituras sobre o tema, na linha das então recentes memórias dos ‘anos de chumbo’ (“O que é isso, Companheiro?”, do Gabeira, “Os Carbonários”, do Alfredo Sirkis), ou ensaios temáticos (“Guerra de Guerrilha no Brasil”, do Fernando Portela). Um quadro impressionante foi-se desenhando, entre relatos de torturas, de ações armadas, de fugas e capturas, de operações militares na selva. Sopravam os ventos da dita “Abertura (Lenta, Gradual e Segura)”, a aprovação da Lei de Anistia, de agosto de 79, e o retorno de Brizola, Arraes, Betinho (“o irmão do Henfil”) e tantos outros exilados, num clima de fim de ditadura que, no entanto, ainda se arrastaria por vários anos. Acompanhei timidamente, mais à distância do que gostaria, o movimento estudantil da virada para os anos 80, tive vivências de grêmio estudantil e centro acadêmico, mas não de militância em organizações mais formais.

2.Quando e por que decidiu estudar a ditadura militar?

Pergunta difícil. Não sei o que veio primeiro, se o interesse nos temas da ditadura ou se o interesse em História, de modo geral. No fim do ensino básico e no ensino médio, alguns professores foram importantes para dar uma direção mais objetiva a esses interesse, e cito particularmente o professor Admário Luiz, que, sem jamais fazer proselitismo, revelava toda a riqueza de um olhar mais crítico sobre a sociedade. Quando entrei na graduação (História) na UnB, a partir de 1982, a coisa ficou mais nítida, inclusive porque a universidade e o país fervilhavam de mobilizações democráticas, assembleias, greves. Lembro da grandíssima professora Adalgisa Vieira do Rosário, em nome de quem saúdo tantas professoras, professores e estudantes que não deixaram as dificuldades da vida prática desestimularem nem a reflexão histórica nem a utopia. Na virada para os anos 90, me aproximei da ditadura como objeto de estudo, quando, no mestrado na Universidade Federal Fluminense – UFF, explorei o ainda pouco estudado movimento político dos subalternos militares (sargentos, marinheiros etc.) entre 1961 e 1964. A dissertação foi orientada pelo professor Daniel Aarão Reis Filho, sendo aprovada em 1992, por uma banca “da pesada”, na qual tive a honra de contar, além do orientador (ele próprio personagem importante na história da resistência armada à ditadura, também com a professora Ângela Castro Gomes e o professor René Dreyfuss. (Daí resultou meu livro “Praças em pé de guerra”, publicado em 2009 pela Editora Expressão Popular). A participação na Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (CATMV-UnB), após 2012, me permitiu uma imersão radical no tema, seja convivendo com depoentes que “combateram o bom combate”, seja explorando os chamados “papéis da ditadura” (a documentação dos órgãos de espionagem e repressão, hoje disponível para pesquisa no Arquivo Nacional e em outros espaços institucionais de memória). “Exemplos de documentos da Assessoria de Segurança e Informação da Universidade de Brasília, que integra o Fundo ASI-UnB, parte do acervo dos chamados “papéis da ditadura”, hoje sob a guarda do Arquivo Nacional”

3.Quais as principais características e contradições da ditadura militar em sua visão?

(Depois de breve silêncio, devolvo a pergunta: em quantos volumes você quer a resposta? Rsrsrs…). O tema, complexo, não merece tratamento ligeiro, mas é incontornável. Mesmo correndo o enorme risco (certeza!) de deixar coisas essenciais de fora da análise, eu destacaria alguns aspectos. Primeiro: a ditadura teve um componente militar impossível de ser desconsiderado (tanto na forma quanto no conteúdo), mas é vital que não se perca de vista seu componente civil. Seja no golpe de 64, seja no regime que o seguiu, foi bastante destacado o papel de parlamentares, lideranças empresariais, tecnocratas, setores do Judiciário e outros operadores do Direito, grupos de comunicação social e do complexo aparato imperialista estadunidense, por exemplo). Sobre a polêmica de como designar o período, se ditadura militar, se civil-militar, prefiro a clareza da expressão: ditadura, é do que se trata.
Segundo aspecto: o contexto internacional é de extrema importância para a compreensão do período. No caso, o mundo vivia a “Guerra Fria” – disputa ideológica, econômica e política entre os grandes blocos de poder, de um lado o autodenominado “Mundo Livre”, capitaneado pelos EUA, e, de outro, o bloco por aqui pejorativamente chamado de “Cortina de Ferro”, a englobar os países sob a batuta da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Assim, estimulados por um profundo anticomunismo, os países do bloco capitalista, em especial as ditaduras da América do Sul, com suas especificidades, sob os influxos da Doutrina de Segurança Nacional, viveram a construção do “inimigo interno”, identificando e supondo eliminar a subversão em qualquer comportamento minimamente desviante do tolerado pela Ordem.
Em terceiro lugar, vale apontar o modelo de desenvolvimento adotado, cuja principal característica, a meu ver, foi o aspecto concentrador de renda, escudado pelo aparato de repressão, o que aprofundou as já enormes desigualdades sociais. Assim, embora como abstração de Estado tenhamos experimentado seletivamente avanços materiais e tecnológicos (a montagem da infraestrutura de energia, telecomunicações, transportes, e a industrialização em determinados setores da economia e regiões do país, por exemplo), convivemos com desastres sociais inadmissíveis (altíssimas taxas de mortalidade infantil, inchaço desumano das periferias urbanas sem saneamento, saúde, educação, transporte, etc.). Permeando isso tudo, a brutalidade da repressão incluiu sequestros e prisões clandestinas, uso sistemático de censura, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres, extermínio de povos originários, caçada de lideranças camponesas, estudantis e sindicais e de outros intelectuais orgânicos que não compactuaram com os rumos impostos ao país de forma autoritária.

4.Qual o papel e em quais contradições se deram as comissões da verdade, em especial a que você participou?

As comissões da verdade se inserem no conjunto de fenômenos, conhecimentos, procedimentos e práticas que, desde a última década do século XX, vem sendo definido como Justiça de Transição. Esse conceito amplo abarca os numerosos e diversificados processos históricos em que se deu o término de experiências traumáticas para a sociedade (como guerras civis, ditaduras militares, conflitos interétnicos etc.) e a passagem para regimes de base democrática ou de caráter menos autoritário e violento que a situação precedente. Esses processos tiveram e têm ritmos, dinâmicas e características peculiares a cada formação histórica específica, mas é possível identificar os grandes eixos em que se desdobram: a) a responsabilização dos agentes perpetradores das graves violações de direitos humanos em questão; b) o restabelecimento da verdade e o processo de memorialização; c) o estabelecimento de políticas de reparação (não apenas materiais, como indenizações e restituição de cargos, mas também simbólicas, como o reconhecimento das violações e o pedido de desculpas às vítimas, pelo Estado); e d) a reforma das instituições para a não-repetição (como a desmilitarização das polícias, a alteração dos conteúdos curriculares nas escolas militares, a democratização dos meios de comunicação social etc.).
A Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (CATMV-UnB), tal como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), se insere nesse contexto. São, ambas, o resultado de disputas políticas e de limitações inerentes ao quadro institucional. Esse aspecto é importante: até onde vão os poderes de uma comissão da verdade? A resposta é dada pelo jogo das forças em disputa na sociedade. Assim, antes de criticarmos uma comissão da verdade pelo alcance limitado de resultados, por exemplo, é preciso considerar qual era seu mandato, até onde iam suas prerrogativas e poderes frente a autoridades que, nem sempre, estavam dispostas a cooperar.
Ainda que limitados, os resultados de comissões da verdade – é o caso da CNV e da CATMV-UnB – foram muito relevantes para pautar o assunto na sociedade e, claro, deixar registrado, com riqueza de provas, o conjunto de graves violações de direitos humanos perpetrados durante a ditadura e, sempre que possível, os responsáveis e sua cadeia de comando, bem como as diversificadas formas de resistência e oposição, a identificação e memorialização de vítimas já ausentes e as estruturas no bojo das quais tudo isso ocorreu. O trabalho sensível dessas comissões deixou patente que as torturas, as mortes e “desaparecimentos políticos” compuseram um quadro não de excessos pontuais de um ou outro mau profissional, mas uma verdadeira política de Estado, com planejamento, recursos humanos, materiais e financeiros voltados para o controle social autoritário, claramente definível como Terrorismo de Estado. (No fim das contas, os “terroristas” eram outros…)

5.Em que lugar você vê o movimento estudantil e sindical na resistência contra o autoritarismo durante a ditadura?

As lutas nem sempre acontecem como gostaríamos que acontecessem. O quadro institucional, no interior do qual as disputas sociais e políticas ocorrem, é dinâmico e variou bastante ao longo dos mais de 20 anos de ditadura. O movimento estudantil e o movimento sindical tiveram destacado papel de oposição nos primórdios da ditadura, entre os anos de 1964 e 1968, bem como a partir da segunda metade da década de 70, já incorporando novos atores sociais como associações de bairro, coletivos culturais, etc. Com a edição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e pelos dez anos seguintes, os resquícios de institucionalidade do Estado de direito que porventura ainda se insinuassem tibiamente foram suprimidos. Tornaram-se, então, comuns as prisões ilegais e sem conhecimento da autoridade judicial, o que permitia ao aparelho repressivo manter os ditos “subversivos”, por muitos dias, em espaços interditos ao olhar público, não raro submetidos seguidamente a interrogatórios sob tortura (cujos métodos chegaram a ser ensinados em cursos com aulas práticas!). A morte do interrogado era, às vezes, um “acidente de trabalho” que podia levar, inclusive, à ocultação do cadáver e a sonegação, às famílias, do sagrado e multimilenar direito de enterrar seus mortos. Os parcos projetos de resistência mediante a luta armada, em guerrilhas urbanas e rurais, jamais chegaram a ameaçar seriamente o Estado ditatorial. Foram logo exterminados, mas foram instrumentalizados para justificar a existência e o crescimento do aparato repressivo e a manutenção do controle pelo medo e da vigilância totalitária. Com o desastre econômico e a crescente falta de apoio popular, as medidas repressivas já não continham a insatisfação geral, e o processo de abertura política a partir de meados dos anos 70 passou a sofrer novamente a pressão dos movimentos de massas nas ruas, estudantes e trabalhadores à frente. Então, a “Nova República”, articulação de viés conservador e “por cima”, incorporando no novo bloco de poder muito do regime anterior, realizou, sem grandes sobressaltos, a transição da ditadura a um regime democrático de baixa intensidade, que nos acompanha desde meados dos anos 80.

6.Embora depois de 21 anos de tortura, morte, autoritarismo, concentração de renda e inflação o poder volta as mãos dos militares, no que se fundamenta o crescimento dessa cultura novamente no brasil? Ou isso não é uma cultura e algo mais como imposição a qual responder é difícil?

Somos um país construído historicamente sob relações sociais de extrema violência que incluem escravização e extermínio de populações inteiras, sejam povos originários, sejam povos submetidos à diáspora africana. Isso acaba incorporado à cultura política, às formas como é exercido o poder e como são organizadas as disputas por hegemonia entre as forças sociais. As torturas em delegacias e prisões e os “esquadrões da morte” precederam a ditadura, lhe foram contemporâneos e a sucederam, com adaptações e peculiaridades territoriais e temporais. Por outro lado, a tutela militar tem sido recorrente em nossa história (os principais episódios políticos da República, como 1889, 1930, 1945, 1954, 1964, 1968, 1984-85-88 e 2016-2018) têm a marca dos quartéis. A cultura em que vivemos tem traços autoritários que explicam muito do racismo estrutural, da discriminação racial e social já naturalizada pelas elites. Enfim, lidamos com processos cujas distintas temporalidades atravessam nossa história, permanentemente em construção. Não tenho uma resposta satisfatória a dar nessa questão, mas apenas um conselho: resistir é preciso, a luta é todo dia.

7.Como podemos construir táticas de disseminação da memória da ditadura em direção a uma organização que tenha mais força para enfrentar o autoritarismo, a fome, a falta de trabalho, a falta de moradia, a falta de saúde e a falta de educação?

Gosto da pergunta, me remete a um dístico do mundialmente famoso Maio de 68: “Sejamos realistas, peçamos o impossível!”  Bem que eu gostaria, mas não tenho uma receita pronta para questões tão viscerais. Mesmo assim, arrisco umas tentativas aqui e ali. Pensando sob o prisma do local, do imediato, do mais próximo de nós, os comuns mortais, há iniciativas bem interessantes, especialmente para o universo de arquitetas, arquitetos e urbanistas: há poucos meses, fruto de parceria entre membros da CATMV-UnB, da Associação dos Docentes da UnB – ADUnB e do Decanato de Extensão – DEX/UnB (Diretoria de Difusão Cultural – DDC, Casa de Cultura da América Latina – CAL), foi concluído o Edital Território Livre, iniciativa  que selecionou e proporcionou uma residência artística, vencida pela artista plástica Érica Ferrari, que permitiu debates remotos durante a pandemia e, ao fim e ao cabo, logrou propiciar interessantes reflexões e a elaboração artística de marcos de memória para futura instalação no campus Darcy Ribeiro da UnB.
Outra linha de ação bem interessante a ser lembrada é a luta pela renomeação da Segunda Ponte, que já foi chamada Ponte Costa e Silve e teve o nome mudado para Ponte Honestino Guimarães, mas foi judicialmente renomeada Ponte Costa e Silva. Trata-se de um processo em aberto, que precisa ser abraçado pela sociedade para ser levado adiante.
Outras formas de pautar o tema da memória e verdade são as intervenções populares como o Samba da Resistência e o Samba do Peleja, ou as instigantes ideias e técnicas de protesto e memória divulgadas no Minimanual de Arte Guerrilha, do Coletivo Aparecidos Políticos, por exemplo.
Enfim, como na canção, “se muito vale o já feito, mais vale o que será”… Tudo está, permanentemente, por fazer. (O que não dá é para ficarmos de braços cruzados, esperando que as coisas se encaixem magicamente no paraíso terrestre que imaginamos). Lembrar é resistir!

Fonte: ArquitetosDF
Crédito imagem: Marcos Santilli, UnB, 1977 (in Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília – CATMV/UnB, pg. 346)